Pastore foi um pensador do Brasil que tratou a economia com rigor e lecionou sob aplausos

Ex-presidente do Banco Central morreu nesta quarta-feira, 21, aos 84 anos; economista estava em plena e intensa atividade profissional e intelectual

PUBLICIDADE

Publicidade
Foto do author Fernando Dantas
Foto do author Luiz Guilherme  Gerbelli
Foto do author Cristiane Barbieri
Atualização:

A morte de Affonso Celso Pastore aos 84 anos ocorre em idade ainda profícua em termos da sua imensa contribuição para o debate e a implementação de políticas econômicas no Brasil, ao longo de várias décadas. Nesse sentido, é uma perda ainda mais irreparável, pois Pastore encontrava-se em plena e intensa atividade profissional e intelectual.

PUBLICIDADE

“Pastore era um patriota e queria ajudar o País”, diz Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). “Ele é um dos pesquisadores que têm os trabalhos mais interessantes e profundos em economia aplicada ao Brasil”, acrescenta.

A singularidade de Pastore no cenário do debate econômico brasileiro foi bem caracterizada no livro A economia com rigor: homenagem a Affonso Celso Pastore, publicado em 2020, em comemoração aos 80 anos do economista (Fernando Dantas, um dos autores deste texto, coorganizou, com Ilan Goldfajn, atual presidente do BID, a edição do livro).

O que mais chama a atenção nos diversos capítulos da obra é como Pastore abordou a economia como uma ciência objetiva, a ser tratada com modelos racionais e testes empíricos sistemáticos das hipóteses.

Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central, morreu aos 84 anos Foto: Wilton Junior/Estadão

Hoje, esse tipo de abordagem é corriqueiro em universidades, instituições de pesquisa e departamentos de análises de bancos. O grande mérito de Pastore (e de mais alguns poucos pioneiros), entretanto, foi ter introduzido o rigor, a racionalidade e o protagonismo dos dados na década de 50, período em que o estudo de economia no Brasil ainda era tratado na base das grandes narrativas sem a adequada comprovação.

Publicidade

Como costuma acontecer em histórias da via real, houve algo de fortuito na maneira como Pastore descobriu sua vocação para a “economia com rigor”. O economista Marcos Lisboa, no primeiro capítulo do livro comemorativo dos 80 anos de Pastore, narra como “nas décadas de 1950 e 1960, a Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP) produziu um pequeno milagre, liderado por dois professores, Alice Canabrava e Luiz de Freitas Bueno”.

Canabrava, ainda na década de 40, em trabalhos sobre a economia do Rio da Prata e a indústria do açúcar, fez o caminho inverso ao costumeiro da época, partindo dos dados para chegar a conclusões. Bueno, engenheiro e estatístico, levou o estudo contemporâneo de economia e a econometria à FEA da USP. Os dois professores formaram quadros como Pastore e Delfim Netto, impregnados dessa visão mais científica da economia. Como menciona Lisboa, Pastore “foi assistente de Canabrava e de Bueno, além de aluno de Delfim”.

Com seu interesse inicial por agricultura, Pastore em sua tese de doutorado mostrou que a produção agrícola reagia a preços de mercado, ao contrário de crença da época ligada aos economistas desenvolvimentistas. “Ele mostrou que (essa corrente) estava errada e que a agricultura brasileira respondia a qualquer incentivo de preço; não havia nada de muito diferente na agricultura brasileira em relação a de outros países do mundo″, aponta a Pessoa.

O aprofundamento em econometria, porém, acabou levando Pastore para a economia monetária, um dos principais temas da sua carreira. Como ele próprio disse, “a agricultura é um problema importante, mas o desequilíbrio macro afeta muito mais o país; abandonei o resto e mudei para macroeconomia”.

Da sua tese de docência sobre temas monetários em 1974 ao livro Inflação e crises: o papel da moeda, entre outros trabalhos, Pastore tratou incansavelmente em publicações acadêmicas, artigos na imprensa e no debate público de problemas macroeconômicos, alguns dos quais mal resolvidos no Brasil até hoje, como inflação, política monetária, política fiscal, câmbio e juros. Em 2021, lançou o livro Erros do passado, soluções para o futuro: a herança das políticas econômicas brasileiras do século XX.

Publicidade

Em 1990, em artigo na Revista Brasileira de Economia (RBE), Pastore investigou a política monetária e a função de reação dos bancos centrais. Em artigo conjunto no livro comemorativo dos 80 anos, Lisboa e Pessoa consideram que a resposta de Pastore antecipa, em um contexto diferente, a famosíssima “regra de Taylor”, utilizada pelos BCs do mundo inteiro, e criada três anos depois pelo economista americano John Taylor.

Presidência do Banco Central

PUBLICIDADE

De setembro de 1983 a março de 1985, Pastore presidiu o Banco Central, numa fase de crise externa aguda e de inflação na casa de 200% ao ano. Foi a culminância de sua carreira no serviço público, iniciada em 1966, como assessor de Antônio Delfim Netto, então secretário da Fazenda do Estado de São Paulo. No ano seguinte, com Delfim nomeado ministro da Fazenda, Pastore passou a integrar a equipe de assessores. Também teve passagens pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e assumiu a coordenação de pesquisa do Instituto de Pesquisas Econômicas (IPE), ligado à USP.

No caso do Banco Central, Pastore foi convidado por Ernane Galvêas, ministro da Fazenda à época, para substituir Carlos Geraldo Langoni, então presidente do BC. Era um momento delicado. Pastore enfrentou a crise da dívida externa — uma das mais duras do País — e se dedicou à negociação com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e bancos credores.

O País lidava com o resultado de uma combinação perversa. Na década de 1970, optou por um crescimento com base no endividamento. Um cenário agravado com os sucessivos choques do petróleo. Havia falta de dólares no País, a inflação superava os três dígitos, e o mundo subia os juros.

Pastore assume a presidência do Banco Central em 1983 Foto: Estadão

“Não tinha muito o que o Banco Central pudesse, sozinho, fazer naquela época (para o controle da inflação)”, afirma José Júlio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do FGV/Ibre e que fez parte do time que sucedeu a equipe liderada por Pastore. “O espaço que ele tinha para ocupar, ocupou, que foi sobre a renegociação da dívida externa. Era o problema número um do País. E ele se dedicou a isso e conseguiu dar uma virada grande nas contas do balanço de pagamentos do Brasil.”

Publicidade

Quando deixou o posto de presidente do BC, Pastore sempre se lamentou pelo fato de não ter endereçado o problema da inflação brasileira, que perdurou até a criação do Plano Real. “Ao sair do BC, ele resolveu se dedicar a pesquisas formais de natureza acadêmica sobre o problema inflacionário e a política monetária em si. Quis o destino que ele não conseguisse pôr em prática aquilo que ele tanto estudara no campo da macroeconomia”, diz Senna.

Professor aplaudido

Depois que saiu do BC, Pastore, além de professor, tornou-se um dos mais respeitados consultores econômicos do Brasil, interlocutor constante e sempre disposto a colaborar para maioria das equipes econômicas que se revezaram até hoje.

Como professor da USP, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Ibmec, foi responsável pela formação de inúmeros economistas. “Era muito severo, mas era um professor apaixonante”, afirma a economista Zeina Latif, que foi aluna de Pastore na USP. “Assisti a aulas que terminaram em aplausos. Ele era alguém que tinha a economia no DNA”, acrescenta.

Zeina menciona também que a saída do BC marcou um isolamento na academia por ter servido a um governo de regime militar. “Quando entrei na FEA (Faculdade de Economia e Administração-USP) estávamos saindo do regime militar. Eu via que ele estava isolado e que sofreu muito as consequências de ser hostilizado pela academia.”

Mas o rigor acadêmico, a honestidade intelectual e a capacidade de se atualizar, diz ela, fizeram com que Pastore fosse posteriormente reconhecido por seus pares. “Ele sempre foi uma pessoa muito correta”, diz Zeina.

Publicidade

“Para ficar num exemplo dessa honestidade, no mestrado minha dissertação falava sobre política monetária e inflação e eu contava o histórico, sempre falando da teoria econômica. Quando precisei descrever o período em que ele era o presidente do Banco Central — e eu contei o que estava escrevendo ao professor — ele disse: ‘Não precisa me defender. Nós erramos porque não tínhamos o conhecimento que se tem hoje (sobre o tema)’.”

Nos últimos anos, Pastore se dedicou à sua consultoria, a AC Pastore Consultores e Associados, com sua esposa, a economista Maria Cristina Pinotti. Também era colunista do Estadão. “Em todas essas décadas, eu jamais vi o Pastore fazer algum comentário de economia para o qual ele não tivesse uma base empírica sólida”, afirma Senna.

Preocupação com o Brasil

Pastore manteve durante as muitas décadas da sua vida profissional a preocupação constante sobre o desenvolvimento do Brasil. Apesar do seu foco em macroeconomia, tinha perfeito conhecimento de que equilíbrio nesse quesito é só uma pré-condição, e que desenvolvimento sustentado em ritmo de convergência com o mundo avançado exige também microeconomia eficiente, boas instituições e educação de qualidade.

“Era uma figura muito firme nas suas ideias, muito centrado na preocupação de (adotar) políticas públicas com base em evidência e feitas com rigor”, diz Persio Arida, ex-presidente do Banco Central e presidente do Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP). “Foi um intelectual público.”

Pastore foi fundador e o primeiro presidente do CDPP, um centro apartidário e voltado para o debate de política econômica.

Publicidade

Apesar da disposição infatigável de advogar por políticas econômicas (e públicas, em geral) racionais e pró-crescimento, Pastore chegou aos últimos anos de sua vida com certo pessimismo, que, nele, nunca descambava para o cinismo.

Nas suas últimas entrevistas, Pastore lamentava o atraso do desenvolvimento do Brasil  Foto: Wilton Junior/Estadão

Na entrevista que encerra o livro comemorativo dos seus 80 anos, Pastore lamenta que, em termos de desenvolvimento, o Brasil tenha deixado passar oportunidades que países como Coreia do Sul e Cingapura aproveitaram, ao ignorar as reformas que tinham que ser feitas para aumentar a produtividade. Assim, o Brasil desperdiçou o “bônus demográfico”, fase em que a população que trabalha cresce mais que a população dependente, e agora tem que lidar com o problema de uma conta previdenciária crescente num país que ainda não é rico.

“As reformas hoje são muito mais custosas e muito mais difíceis de ser feitas. Quando isso acontece, estamos condenados a crescer menos do que poderíamos. O potencial do Brasil será permanentemente mais baixo do que seria tivéssemos feito tudo isso antes. Nós temos um legado negativo em cima da economia brasileira que, infelizmente, é muito grande”, concluiu Pastore.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.