Míopes são os indivíduos que enxergam mal à distância, e um investidor seria míope caso tivesse uma taxa de desconto muito alta, levando-o a ignorar os riscos de longo prazo e sendo seduzido pelos ganhos presentes. Embora há muito eu tenha me desiludido com a hipótese de mercados eficientes, nunca cheguei ao extremo de supor que a maioria dos investidores ignora os riscos. Por isso não me atrevo a propor que o atual rally nos preços de ativos seja fruto da miopia.
Minha hipótese é que no exercício competente de seu trabalho, os investidores estejam apenas aproveitando a oportunidade de realizar ganhos temporários, proporcionados pela surpresa de um crescimento econômico mais forte combinado com a “ajuda” da inflação, que em vez de ser o “bandido” está fazendo o papel do “mocinho”, encobrindo temporariamente a realidade da nossa situação fiscal.
Começo pela surpresa no crescimento, mas não sem antes afirmar que mesmo reconhecendo a boa notícia e a resiliência de nossa economia é difícil, diante de perto de 15 milhões de desempregados e de um contingente elevado de brasileiros que sobrevive à custa de uma ajuda emergencial, ver nela só sinais positivos. Ela é a consequência de uma bonança externa semelhante à que favoreceu Lula em 2010, embora em escala bem menor. Consiste na combinação do forte crescimento das exportações mundiais com um novo ciclo de elevação dos preços internacionais de commodities. Embora este não seja um super ciclo semelhante ao de 2002/11, no qual em 10 anos o CRB foi multiplicado por três, e durante o qual (à exceção de 2008/09) o crescimento do PIB chinês se manteve em dois dígitos, por um bom tempo ainda ajudará as exportações brasileiras. Quando o crescimento da China retornar ao seu potencial, estimado em 5,5% ao ano, o ciclo terminará, mas isto não ocorrerá em 2021.
Entretanto, esta é apenas parte da explicação. O afrouxamento das regras de distanciamento social durante a segunda onda de contágio, levou aqueles que não têm condições de trabalhar em um home office a ir para as ruas, enfrentar transporte coletivo e locais de aglomerações. Se de um lado esse afrouxamento, que é claramente estimulado pelo governo, pode ajudar marginalmente a economia, na falta de vacinação rápida e eficiente provoca aumento do contágio e das mortes.
Quanto à inflação, atualmente a sua principal causa está nos efeitos da depreciação cambial já ocorrida sobre os preços agrícolas e os bens industriais, além do aumento dos preços do petróleo e tarifas de energia.
Se o Brasil não tivesse um risco fiscal superior ao da grande maioria dos países emergentes e da totalidade dos maduros, o enorme estímulo monetário imposto pelo FED teria valorizado o real em intensidade semelhante à dos demais países, permitindo a manutenção das taxas de juros mais baixas por mais tempo. O risco fiscal é uma causa peculiar ao Brasil, que explica por que o real está mais depreciado e mais volátil do que a grande maioria das demais moedas que, seguindo o enfraquecimento do dólar, já estão mais valorizadas do que em janeiro de 2020.
Antes da negociação do orçamento, que permitiu gastar R$ 110 bilhões acima do teto, acreditava-se que o “furo” poderia ser maior, e naquele período o real flutuava em torno de R$5,60/US$. Quando o Centrão e o governo chegaram a um acordo os prêmios de risco começaram a cair, e o real foi gradualmente se aproximando de R$ 5,20/US$. Finalmente, quando ficaram claros os benefícios da inflação sobre o déficit primário e sobre a relação dívida/PIB o câmbio furou a barreira dos R$ 5,10/US$.
Devido ao aumento da arrecadação, fruto do maior crescimento e de mais inflação, o déficit primário será menor, e pelo efeito diferenciado do câmbio sobre o deflator do PIB, um crescimento de 5% em 2022 se transforma em um crescimento de 15% do PIB nominal, derrubando a relação dívida/PIB ao final de 2022 abaixo do valor atingido em 2021, sem que o governo tenha movido uma palha.
No curto prazo, graças a uma inflação mais alta caiu a percepção de risco fiscal, mas a médio e longo prazos nada se alterou, e a realidade voltará a se impor.
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE
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