Análise | O agro produz, exporta e sobra comida, mas falta renda para muitos

Se nem todos no Brasil comem tanto e tão bem quanto seria recomendável, isso de nenhum modo se explica pela escassez de alimentos

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Foto do author Rolf Kuntz

Com seca, incêndios e enchentes, o agronegócio brasileiro bateu recordes de exportações, atingiu novos mercados e se mostrou novamente um dos mais dinâmicos do mundo, com vendas externas de US$ 152,63 bilhões até novembro - uma receita 5,2% maior que a do ano anterior, apesar da baixa dos preços internacionais. Em dois anos, desde o começo de 2023, mercados foram abertos para novos produtos em 62 países de todos os continentes. A China continuou liderando as compras de produtos agropecuários do Brasil.

Com soja e milho em primeiro lugar, as exportações brasileiras de alimentos são hoje diversificadas e incluem grandes volumes de carnes in natura e semiprocessadas. Há cerca de meio século o café ainda era o item mais importante das vendas agropecuárias ao exterior. A partir daí houve a diversificação dessas exportações, num movimento paralelo à expansão dos embarques de produtos industriais. Neste ano, até novembro, as vendas de café ao exterior proporcionaram receita cambial de US$ 11,3 bilhões, menos de um décimo da receita cambial do agronegócio.

Com soja e milho em primeiro lugar, as exportações brasileiras de alimentos são hoje diversificadas e incluem grandes volumes de carnes in natura e semiprocessadas. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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Analistas da imprensa e também da academia mostraram inquietação quando as exportações de alimentos se diversificaram e cresceram mais velozmente, a partir da metade dos anos 1970. Alguns apontaram riscos para o abastecimento interno. Mas ocorreu o contrário. Aumentou a oferta de alimentos no mercado interno e seu custo relativo diminuiu. No começo dos anos 1990, institutos de pesquisa reduziram o peso da comida na formação dos índices de preços ao consumidor.

Quando ocorreu essa redução, analistas a associaram inicialmente ao Plano Real. Erraram, no entanto, ao formular essa explicação. A comida mais barata, incluído o frango vendido por um real o quilo, era consequência dos ganhos de produtividade acumulados na década anterior. Esses ganhos já eram resultantes, em grande parte, do trabalho da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa, fundada em Brasília em 1973.

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A Embrapa ampliou, aprofundou e, de certa forma, rearticulou, trabalhos de pesquisa já realizados por instituições acadêmicas e também por algumas empresas privadas. A nova pesquisa patrocinada pelo governo federal foi organizada regionalmente, com a criação de núcleos especializados em produtos e adaptados a diferentes condições ambientais. Surgiram, assim, centros voltados especialmente à pesquisa de produtos - para exemplificar - como arroz, feijão, trigo, milho e soja.

Esses trabalhos facilitaram, entre outros avanços, a produção de alimentos em ambientes naturais muito diferentes dos originários. Isso explica, por exemplo, a cultura da soja em condições climáticas muito distintas daquelas encontradas em áreas temperadas da China. O suporte científico, da Embrapa e de outras entidades, tem permitido realizações dificilmente previsíveis há meio século ou pouco mais, como o plantio de uvas viníferas na Bahia.

Desde os anos 70 do século passado, a política agrícola tem sido uma das poucas áreas com razoável continuidade na ação governamental, mesmo com mudanças de ministros e de partidos nos centros de poder. Essa continuidade pode valer estudos interessantes sobre gestão pública e política. Se nem todos comem tanto e tão bem quanto seria recomendável, isso de nenhum modo se explica pela escassez de alimentos. Ao contrário: o Brasil produz comida mais que suficiente para o mercado interno e para a exportação. Se há problemas de consumo, a explicação evidente é encontrável na desigualdade econômica e na má distribuição de renda, associada à desigual distribuição de oportunidades educacionais e de avanço profissional.

Análise por Rolf Kuntz

Jornalista

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