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‘Sem a ciência, não é possível combater a fome no Brasil’, diz pesquisadora Mariangela Hungria

Engenheira agrônoma e integrante da Academia Brasileira de Ciências, pesquisadora da Embrapa defende que tarefa deve unir os setores público e privado

Foto do author Isadora Duarte

A ciência integra o desafio de garantia à segurança alimentar do Brasil. É o que defende a pesquisadora e engenheira agrônoma Mariangela Hungria, integrante da Academia Brasileira de Ciências. “Sem a ciência, não é possível combater a fome, a começar pela própria produção de alimentos. Passamos de importador de alimentos na década de 1960 para quarto maior produtor mundial com liderança da ciência. Hoje, temos novos desafios e a principal limitação estará nas mudanças climáticas”, diz.

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À frente do livro Segurança Alimentar e Nutricional: O Papel da Ciência Brasileira no Combate à Fome, lançado na última semana com 41 autores de 23 instituições de pesquisa, Hungria defende atuação conjunta entre academia, governo e setor privado. “Precisamos de estratégias da ciência para combater a fome com propostas concretas aos tomadores de decisão. Se adotada uma abordagem multidisciplinar entre as ciências, certamente, acabaria a fome no Brasil”, afirma.

Há 40 anos como pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Hungria é reconhecida e premiada por trabalhos na área de insumos biológicos.

Pesquisadora da Embrapa e engenheira agrônoma, Mariangela Hungria é integrante da Academia Brasileira de Ciências.  Foto: Gerardo Lazzari/Divulgação

O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, ao mesmo tempo em que há 33 milhões de pessoas com insegurança alimentar grave no País. Como a ciência pode contribuir no combate à fome e na garantia da segurança alimentar?

O livro (Segurança Alimentar e Nutricional: O Papel da Ciência Brasileira no Combate à Fome) surgiu desse paradoxo de que, por um lado, o Brasil sempre produz cada vez mais e, por outro lado, tem um número chocante de 33 milhões de pessoas que não têm uma refeição por dia, conforme pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. A fome é multicausal e exige multidisciplinaridade para resolução. A fome não é um problema do agro de produzir ou do governo de ter políticas públicas ou de distribuição e educação. O combate à fome precisa de todas as ciências e de novas abordagens e metodologias científicas, incluindo, além da ciência, o setor público, o setor privado e o terceiro setor.

Qual é o papel da ciência nessa equação?

Sem a ciência, não é possível combater a fome, a começar pela própria produção de alimentos. Passamos de importador de alimentos na década de 1960 para quarto maior produtor mundial porque tivemos liderança da ciência. Hoje, temos novos desafios e a principal limitação estará nas mudanças climáticas. Isso significa que precisaremos de muita ciência para termos novas cultivares, novos manejos, novas previsões climáticas para enfrentar isso, porque senão podemos perder em cinco anos o que conseguimos em 50. Precisamos de programas governamentais para tirar as pessoas com insuficiência alimentar grave dessa situação e depois passar para o setor produtivo, mas para isso precisamos de dados. E a ciência entra na coleta e no tratamento de dados, o que passa também pelas ciências econômicas que subsidiam os programas de governo para tirar a população da insegurança alimentar e a ciência participa ainda nas políticas nutricionais de produção de alimentos mais fortificados. Se adotada essa abordagem multidisciplinar entre as ciências, certamente, acabaria a fome no Brasil.

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A produção brasileira de alimentos deu um salto de produtividade nos últimos 50 anos, entretanto, parte da população ainda não tem acesso aos alimentos. É necessário produzir mais alimentos e mais voltados ao mercado interno?

Esse mercado que citamos com recordes de produção é o das commodities para exportação, o que nos gera uma balança comercial positiva. Não podemos demonizar esse agro, mas esse agro precisa ser reinventado porque o mundo exige um novo agro com sustentabilidade, em busca da agricultura regenerativa e adaptada às mudanças climáticas globais. Precisamos de muita ciência para reinventar esse agro das commodities. Quem coloca a comida na nossa mesa é quase sempre a agricultura familiar. A ciência precisa ajudar muito mais a agricultura familiar porque são dezenas de produtos. É muito importante essa percepção do agro de commodities de que não consegue resolver os problemas sozinho. O agro precisa da ciência, da sociedade e trabalhar com o entorno para ter maior produtividade. Um exemplo é o projeto Semêa, da Fundação Bunge, no qual o grande agricultor trabalha com a agricultura familiar do entorno em 12 mil hectares em Canarana (MT), com os agricultores familiares fornecendo abelhas e aumentando o rendimento das lavouras e os grandes produtores investindo na educação e no fornecimento de serviços, o que fortalece a economia local e diminui a insegurança alimentar, incluindo as populações indígenas e o reflorestamento.

No Projeto Semêa, da Fundação Bunge, o grande agricultor trabalha com a agricultura familiar do entorno, em 12 mil hectares em Canarana (MT).  Foto: Keiny Andrade/Divulgação

A segurança alimentar, portanto, passa por incentivos à produção de alimentos básicos, como arroz, feijão e mandioca, que vinham perdendo espaço nas lavouras?

Se a agricultura familiar não for fortalecida chegaremos ao ponto em que os pequenos agricultores vão arrendar as terras, a produção desses alimentos vai cair e os preços desses produtos, como arroz e feijão, vão aumentar muito. Fortalecer a agricultura familiar é uma questão de soberania nacional, porque não podemos ser dependentes de importar aquilo que responde por pelo menos 80% do que comemos diariamente. Soberania alimentar é o direito dos povos terem acesso à comida, decidirem sua alimentação e fortalecer as cadeias produtivas locais.

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Essas políticas públicas e transversais para combate da insegurança alimentar perpassam também o diálogo e ações com a indústria?

Hoje processamos uma variedade pequena de produtos. No processamento, é preciso conservar propriedades dos produtos, o que exige pesquisa para descoberta dos melhores métodos. Hoje, a quantidade de alimentos perdida no pós-colheita seria suficiente para matar toda a fome do Brasil. De frutas, a perda é de 70%. O Brasil é um dos países com maior perda de alimentos pós-colheita. Se tivermos indústrias de menor escala que possam processar alimentos locais, reduziremos as perdas.

Tecnologias, como a transgenia, são questionadas por órgãos de defesa do consumidor e por uma parcela da sociedade. Do ponto de vista da ciência, são tecnologias seguras para alimentação?

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Existem projetos de transgenia extremamente importantes e que podem solucionar problemas nutricionais, como a biofortificação de alimentos. Por exemplo, alimentos enriquecidos em vitamina A ou em ferro para populações carentes desses nutrientes. Essa linha da transgenia de biofortificação é de extrema importância, mas ficou estigmatizada. Os estudos mostram que a transgenia, por exemplo na soja, nutricionalmente não faz diferença. As diferenças são no manejo. Agora, temos novas ferramentas de edição gênica que não acrescentam gene de outra espécie, mas corrigem ou alteram parte do genoma. Essas novas ferramentas permitem mudanças mais fáceis e sem danos ao meio ambiente, o que vai permitir obter materiais genéticos com melhor qualidade nutricional.

A senhora mencionou os desafios das mudanças climáticas à produção de alimentos. A segurança alimentar é inerente à segurança climática?

As mudanças climáticas são o maior desafio que temos para os próximos anos. Não podemos responder pelos que mais poluem, Estados Unidos e China, que não querem mudar suas matrizes de emissão de gases de efeito estufa. Temos de nos preparar para isso com plantas mais resistentes, monitoramento climático mais aperfeiçoado, melhor plantio direto. Temos de dar nossa contribuição para diminuir as emissões, porque os efeitos das mudanças climáticas vão para além da produção de alimentos, e urgentemente preparar a agricultura para esses extremos climáticos.

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