O agricultor Ademar Pereira, de Caconde, no interior de São Paulo, é especialista em produção de café, mas sempre teve pouca afinidade com o mundo digital. Com 46 anos, ele só teve os primeiros contatos com a internet há sete. “Moro em uma região rural montanhosa, no bairro da Conceição, e a vida toda foi sem acesso a telefone. A gente sempre dizia que o sistema de voz a distância não nos pertencia”, disse. Hoje, Pereira compra insumos, vende café e faz boa parte da gestão da lavoura pela internet. Não só ele, mas outros 1.350 pequenos produtores da região.
A virada tecnológica que mudou o perfil da agricultura de Caconde está sendo impulsionada pelo projeto Semear Digital (Centro de Ciência para o Desenvolvimento em Agricultura Digital), coordenado pela Embrapa Agricultura Digital e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) que tem como meta a inclusão digital de 14 mil pequenas e médias propriedades rurais no Brasil.
A iniciativa já criou os chamados Distritos Agrotecnológicos (DATs) em cinco regiões do País, incluindo São Paulo. No interior paulista, além de Caconde, já funciona um DAT em São Miguel Arcanjo. Os outros atenderão Jacupiranga, Lagoinha e Alto Alegre. Em Minas Gerais, será atendido o município de Ingaí.
As regiões Norte e Nordeste estão sendo integradas ao projeto a partir de Breves (PA) e Boa Vista do Tupim (BA). No Centro-Oeste participa a cidade de Guia Lopes de Laguna (MS) e, no Sul, o município de Vacaria (RS). O projeto leva em conta as peculiaridades de cada região e engloba cadeias produtivas variadas, como as do café, piscicultura, mandioca, tomate, frutas, leite, palmito pupunha, soja, milho, cana-de-açúcar, açaí e búfalo.
Negócio
De acordo com a pesquisadora Luciana Alvim Romani, da Embrapa Digital, o trabalho inicial foi ouvir os produtores, sentir as suas dificuldades e atuar junto às associações e cooperativas, em parceria com instituições de pesquisa e inovação para capacitá-los para o mundo digital.
“De cara a gente percebeu que o maior interesse deles estava na comercialização, em fazer o produto chegar ao mercado. Mas o problema era de gestão: o agricultor fazia todas as tarefas da maneira como estava acostumado e com isso perdia eficiência e dinheiro”, disse.
Ela afirmou que alguns núcleos de produtores abordados pelo projeto ainda faziam gestão com lousa e giz. “Colocavam tudo lá e, depois, apagavam e perdiam um histórico que seria importante para tomar decisões. Mas percebemos que, ao mesmo tempo em que estavam isolados digitalmente, eles também estavam ávidos por informações”, disse.
Parcerias com a iniciativa privada e outras instituições, como o Instituto de Economia Agrícola (IEA), a Escola Superior de Agricultura da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), Instituto Agronômico (IAC-SP), Universidade Federal de Lavras (UFLA) e o Instituto Nacional de Telecomunicações, além do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), fizeram o projeto avançar.
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No primeiro ano, segundo Luciana, foi definida e aplicada a metodologia para a escolha dos municípios que seriam abordados. “Agora estamos trabalhando nesses dois projetos pilotos (Caconde e São Miguel Arcanjo) e em abril começamos o mapeamento dos demais, identificando os gargalos de conectividade e propondo soluções. É um trabalho para quatro anos”, disse.
O projeto está aberto a novos parceiros, como cooperativas, empresas fornecedoras, startups, programas de apoio ao empreendedorismo e inovação aberta, além de agentes financeiros, instituições de ensino e pesquisa das esferas federal, estadual e municipal. O plano é reproduzir o formato para outros municípios, ampliando a inclusão digital de pequenos produtores.
Em São Miguel Arcanjo, foi necessário levar a conectividade aos produtores rurais de frutas e hortícolas. O município é grande produtor de uvas de mesa. As primeiras torres com antenas foram instaladas sob a coordenação do CPqD. Conforme Luciana, 63 produtores passaram a usar a rede digital para obter informações sobre preços e previsão do tempo – a uva é produto sensível às mudanças climáticas. Uma pesquisa apontou aumento médio de 28% de receita e redução de 24% nos custos. Cerca de 60% observaram melhoria na qualidade dos produtos. O trabalho foi reconhecido com o Prêmio ABDI Anatel de Redes Privativas na categoria Rede Privada Agro.
Integração
Em Caconde, o projeto encontrou uma estrutura de internet já instalada, o que facilitou a adesão dos produtores. Havia projetos de conectividade na região iniciados em parcerias entre o Sindicato Rural de Caconde e a Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (Faesp), com o Sebrae e com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar). A chegada do Semear acelerou o processo. “Estamos em lua de mel com estas instituições, rompendo um isolamento quase secular. O município é uma reforma agrária natural: são 2.303 produtores e 605 têm menos de 5 hectates”, disse Pereira, cafeicultor que também preside o sindicato rural.
Algumas propriedades produzem café diferenciado, em lavouras a 1,4 mil metros acima do nível do mar, antes vendido como café comum. Pereira disse que os parceiros entenderam a dificuldade de levar internet para o alto da montanha e buscaram uma solução tecnológica. “Hoje temos 73 antenas de longo alcance no cume das montanhas com baterias estacionárias, abastecidas por energia de painéis solares. Acabou o silêncio: tratamos tudo em grupos de WhatsApp. Estamos em contato direto com as cafeterias, com os melhores compradores. Já não somos nós que vamos atrás, eles nos procuram.”
Recentemente, o Semear identificou uma demanda dos piscicultores, muitos deles também cafeicultores, e já trabalha em tecnologias para melhorar a produção de tilápias em 250 tanques-redes instalados na represa do município e em tanques escavados nas propriedades. O plano é fechar uma parceria com a startup Teletanque, que já trabalha com piscicultores do município, para controlar digitalmente a população, a qualidade da água e o fornecimento de ração aos peixes.
Tanto em São Miguel Arcanjo como em Caconde, a digitalização da agricultura produz reflexos sociais mais amplos. Os produtores mais idosos passaram a contar com a ajuda dos filhos para a imersão no mundo digital, fazendo com que eles, em contrapartida, passassem a se interessar mais pela produção. Muitos jovens estão ajudando os pais a divulgar as marcas de seus produtos, fazendo marketing digital em redes sociais. A rotina das famílias também mudou: de pagamentos de contas à marcação de consultas médicas, passando pelas compras via internet, tudo passou a ser feito por meio digital.
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