'Ajuste fiscal é o principal caminho para Brasil evitar novo rebaixamento'

Para diretor-executivo do Brasil no FMI, País adquiriu 'sentido de necessidade', após corte da nota de crédito pela S&P, embora esteja atrasado na discussão de reformas estruturais para equilibrar as contas públicas no longo prazo

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O diretor-executivo do Brasil no FMI, Otaviano Canuto Foto: Fabio Motta/Estadao

O ajuste fiscal é o principal caminho para que o Brasil evite um novo rebaixamento na nota de classificação de risco após ter perdido o grau de investimento pela agência Standard & Poor's (S&P) na semana passada, afirma Otaviano Canuto, diretor-executivo do Brasil no Fundo Monetário Internacional (FMI). Doutor em economia na Unicamp e ex-vice-presidente do Banco Mundial, Canuto diz que o País adquiriu  "sentido de necessidade" após a decisão da S&P, embora esteja atrasado na discussão de reformas estruturais para equilibrar as contas públicas no longo prazo.

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De passagem pelo Rio e a caminho de Brasília, por onde passou em missão técnica pelo Fundo, encerrada sexta-feira, o economista diz ao Estado que o maior risco para o Brasil atualmente é “não fazer o dever de casa” em relação às reformas, diante da nova conjuntura da economia mundial, com emergentes crescendo menos e a queda nos preços de commodities. A seguir, os principais trechos da entrevista:

O quão perto o Brasil está de um novo rebaixamento pelas outras agências?

Tenho a impressão que a mudança de rota pelo governo se deu antes mesmo do anúncio. Entre agora e o momento em que as agências fizerem sua revisão, muita coisa pode acontecer. Com um programa novo, novas metas podem ser estabelecidas. Isso certamente é uma mudança importante num parâmetro da formação do “rating”. O “rating” dessas agências diz respeito à dívida pública. Não é uma avaliação do País, se é bom, se é ruim, se é junk (lixo), se não é. O “rating” das agências reflete uma avaliação da capacidade de pagamento (da dívida).

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Ajustar o fiscal é o principal caminho para evitar novos rebaixamentos?

É o principal caminho. Tem um lado de acertos na política econômica este ano, que foram importantes e estão sendo subestimados neste momento. Por exemplo, o ajuste corajoso e rápido de preços relativos que está acontecendo. A defasagem de preços administrados em relação aos preços livres é algo que foi corrigido com uma velocidade muito grande, maior do que muitos imaginavam. A velocidade da correção dos preços internacionais em relação aos preços domésticos, ou seja, a taxa de câmbio, é um ajuste importante. O déficit em conta corrente no balanço de pagamentos já está respondendo. Então, muito já aconteceu este ano. A peça que falta encaixar é o fiscal.

Entre aumento de receitas via tributos e corte de gastos, qual é a melhor equação?

Tem que se levar em conta as duas coisas, ambas calcadas na realidade. No curto prazo, há um limite do que pode ser feito no lado das despesas. A situação fiscal reflete questões estruturais, que vêm se materializando já há bastante tempo e que puderam ficar em segundo plano enquanto a economia crescia às taxas que cresceu no início do milênio. Mesmo com a despesa pública crescendo inexoravelmente, ano após ano, a subida dela como proporção do PIB não foi tão sentida porque houve, do lado da arrecadação tributária, um aumento muito grande, acompanhando o processo de formalização no mercado de trabalho e o crescimento econômico. O problema é que esses ganhos possíveis pelo lado tributário cessaram. Aí, a questão estrutural dos gastos públicos subindo aparece com força. São coisas que estão incorporadas em leis, na Constituição, em compromissos contratuais que foram assumidos pelo governo e que não podem ser revertidos facilmente. Isso exige um processo de mudança, de reforma estrutural, que leva tempo.

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Por isso acaba sendo necessária alguma medida do lado da receita?

Exatamente. Por isso, tanto as pessoas falaram de eventuais arrecadações tributárias extraordinárias, temporárias. Não é que o governo esteja propondo uma mudança definitiva no patamar de arrecadação tributária. Em parte, esses tributos vão tapar o buraco da arrecadação tributária que caiu fortemente este ano por conta da superdesaceleração. Agora, nem tanto ao mar, nem tanto à Terra. Ao mesmo tempo em que se implemente esse pacote conjuntural, com medidas extraordinárias e com medidas tributárias temporárias, cortando onde puder cortar no curto prazo, idealmente já se deveria ter alguma discussão de reforma estrutural para sinalizar que, no futuro, essas medidas extraordinárias poderão ser revertidas.

Estamos atrasados nessa discussão sobre reformas estruturais?

Sim, porque, em grande medida, infelizmente, as turbulências políticas estão prejudicando isso. Como economista, como brasileiro, o meu desejo é de que se consiga limpar um pouco o terreno e concentrar algum esforço nessa discussão mais estrutural, não deixando que toda a turbulência política e que todo o processo de "passar a limpo" movido por instituições no que diz respeito à governança prejudique essa discussão estrutural.

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Nesse sentido, como o sr. vê as medidas anunciadas na segunda-feira?

A recessão piora se não houver sinalização de uma meta positiva para o superávit. É também fundamental que se inicie tão brevemente quanto possível a discussão de medidas estruturais. A Previdência é um exemplo óbvio.

A turbulência política atrapalha também a decisão de curto prazo, não?

As dificuldades hoje no diálogo estão atrapalhando até o encaminhamento da questão de curto prazo. Aí, eu confio muito no instinto de salvaguarda, na força das instituições brasileiras, no sentido de evitar o pior. No frigir dos ovos, sou um crente de que a necessidade vai forjar o compromisso. É por isso que tenho dito que o evento da semana passada pode ser um catalisador. A reação da sociedade civil e a pressão sobre os envolvidos na negociação para conseguir sacar alguma coisa para o curto prazo cresceram da semana passada para cá. Criou um sentido de necessidade. No fundo, as agências podem ser vistas como uma espécie de canário na mina. Diz-se que mineradores de carvão costumavam levar um canário com eles para o trabalho dentro das minas porque, quando o canário morria, era um sinal de que estava com pouco oxigênio.

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O papel do FMI reduziu-se na década passada, com o grande crescimento das economias emergentes. Agora que os emergentes desaceleraram e terminou o boom de commodities, o papel do FMI vai ter de ser reformulado novamente?

Eu mesmo coeditei um livro em que saiu um ensaio, publicado em 2010, e pelo que paguei um preço. Muito entusiasmado com o que estava acontecendo no mundo emergente, impressionado com a potencial crise nos países avançados, em um dos capítulos do livro comecei a falar em troca de locomotivas na economia mundial.

Isso não se concretizou?

Não. Tenho que fazer o mea-culpa. Também me peguei pelo entusiasmo. Em vários dos fatores que apontei lá, que seriam potencialmente capazes de fazer o mundo emergente em geral se descolar e continuar mesmo com os países avançados (em crise), não pus ênfase suficiente no conjunto de reformas que esses países teriam de fazer para usufruir disso. A China antevia a necessidade de reformas, mas, como todo mundo, ficou com medo do buraco que viu, resolveu fechar os olhos e deixar um pouquinho da bolha ir sustentando a indústria da construção e o modelo anterior, mesmo sabendo que aquilo não tinha muito futuro de longo prazo. A mesma coisa aconteceu na Índia, a agenda de reformas estruturais esmaece na Índia, esmaece no Brasil, esmaece na Rússia. A Rússia, em termos de governança corporativa, vê até um retrocesso.

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O novo cenário mundial impacta a reforma da governança do FMI?

Essa necessidade e essa pressão vão continuar, independentemente da conjuntura. A influência pode ser de diversos modos, mas como o distanciamento da estrutura mundial do PIB da estrutura de governança das instituições, inclusive do FMI, é brutal, a pressão vai continuar.

No novo cenário da economia mundial, qual é o maior risco para o Brasil?

Não fazer a lição de casa. E eu apontaria três áreas. Uma óbvia é a revisão do gasto público. Rever qualidade e quantidade. Outra óbvia, até para facilitar a vida dos produtores, para fomentar inovações, permitir e tornar mais fáceis os ganhos de produtividade, é rever o que se pode chamar de ambiente de negócios no Brasil.

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Aí entra legislação tributária, reforma trabalhista?

Exatamente. Tem coisas que mais ou menos o governo até já avançou. Nunca estivemos tão perto de um processo de simplificação do imposto sobre valor agregado (o ICMS, principal tributo estadual, cuja unificação de tarifas é objeto de reforma proposta pelo governo federal).

Qual o terceiro ponto?

É outro óbvio, a infraestrutura, que é também um capítulo dos outros dois. (É preciso) Fazer a sintonia fina do aparato regulatório para permitir maior parceria público-privada em infraestrutura. Financeiramente, o Estado vai estar limitado. Se o País não levantar investimentos, a ausência de infraestrutura vai continuar gerando desperdícios monstruosos como os que a gente tem hoje em dia.

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Diante da crise política, o sr. está mais otimista ou pessimista de que o País vai fazer essa lição de casa?

Mais otimista, porque acho que está cada vez mais claro para todos que tentar voltar a uma agenda de políticas econômicas que, bem ou mal, funcionaram em décadas anteriores, já não dá. Não adianta imaginar que você pode revivê-las. Para mim, é uma sensação de “déjà vu” ver gente falando, defendendo coisas, em pleno 2015, como se a gente estivesse ainda nos anos 1960, ou 1970. É amargurante. Vou dar um exemplo claro: proteção comercial. O mundo inteiro evoluiu na direção de não usar os instrumentos velhos, clássicos de fechamento de comércio como forma (de proteção). Nesse sentido, o Brasil, comparado com seus pares, é a economia mais fechada do mundo.

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