EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Líder de mercado na Oliver Wyman, Ana Carla Abrão trabalhou no setor financeiro a maior parte de sua vida, focada em temas relacionados a controle de riscos, crédito, spread bancário, compliance e varejo, tributação e questões tributárias.

O que está em jogo não é a economia, é a defesa do Estado de Direito

A volta do voto impresso que insiste em negar os avanços tecnológicos de um mundo moderno, intrinsecamente digital, é um grande retrocesso

PUBLICIDADE

Publicidade
Por Ana Carla Abrão
Atualização:

O ano era 1982. Experimentávamos eleições para governador no Brasil pela primeira vez desde 1960. Meu pai era candidato a deputado federal. Crianças, colávamos cartazes nos postes. Mesmo conhecido e admirado pelos anos em que governou Goiás, ainda que como governador “biônico”, era preciso fazer campanha, distribuindo “santinhos” e divulgando seu nome e número naquele Estado grande que equivalia ao que são hoje Goiás e Tocantins

PUBLICIDADE

Apesar do nome difícil de escrever na cédula impressa – Irapuan –, sua eleição foi fácil. Foi, então, o deputado mais votado por Goiás. Em 1986, vieram outras eleições. Meu pai foi eleito para o Senado e minha mãe, para a Câmara Federal. Eu já tinha 17 anos e fui designada para acompanhar a apuração dos votos. 

Na cédula, além de “Irapuan” no espaço destinado ao candidato para o Senado, agora tínhamos de também identificar “Lúcia Vânia” onde deveria caber o nome para deputado (sim, assim sem “(a)”) federal. Naqueles papelotes jogados sobre a mesa de apuração e abertos um a um e repassados aos fiscais, não era fácil garantir que Lucivani ou Irampuã (para complicar, Iram era o nome do outro candidato ao Senado, também eleito) eram votos para eles, e não a serem anulados. 

Entre vitórias e derrotas, milhões de eleitores vão às urnas, a cada dois anos. Foto: Filipe Araújo/Estadão

Mas de lá para cá avançamos. Na alfabetização dos cidadãos, na identificação digital, na implantação de urnas eletrônicas e na apuração mais rápida e mais segura. Entre vitórias e derrotas, milhões de eleitores vão às urnas desde então, a cada dois anos. Em 2022, não será diferente.

Mas não será fácil, como mostra este duro 2021. Na economia – que acompanha a política –, as expectativas de crescimento econômico começam a soluçar, com 2022 entrando em zona de incerteza. A alta da inflação fez com que o Banco Central subisse os juros para 5,25%, refletindo a reversão de uma das maiores conquistas econômicas recentes. O desemprego, não por culpa do IBGE, teima em não ceder e mostra 14,8 milhões de pessoas ao relento. Nessa mesma esteira, as preocupações fiscais voltam à cena com as pressões renovadas por mais – e mais eleitoreiros – gastos públicos.

Publicidade

O Bolsa Família virando Auxílio Brasil, mais para turbinar votos do que para ajudar quem precisa, ressuscita o onipresente “fura-teto”, enquanto a criatividade contábil de uma PEC desarrazoada defende o parcelamento de dívidas reconhecidas em juízo como se calote não fosse. O Orçamento continua sendo distribuído com a nebulosidade das emendas de relator e uma não reforma tributária busca o impossível, melhorar o sistema sem corrigir seus enormes erros.

O salvador novo ciclo de commodities não veio assim tão forte, num mundo ameaçado pela variante Delta. No Brasil, a produtividade está estagnada, e a educação abandonada. Enquanto isso, a desigualdade aumenta, e as condições de mobilidade social se deterioram ainda mais. Mas o que tem ibope no Parlamento são a votação do Distritão e o fundo eleitoral de R$ 5,7 bilhões, garantindo vantagem a quem se gaba de a cada quatro ou oito anos se submeter ao “crivo das urnas”. Crivo existe quando há igualdade de condições na seleção. 

Mas não foram o quadro econômico deteriorado ou os impactos negativos das incertezas políticas sobre as perspectivas econômicas o que uniu mais de 25 mil pessoas em torno dos três parágrafos do manifesto “Eleições serão respeitadas”, originado no Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP). Foi a defesa da democracia. Foram o repúdio ao retrocesso e a vontade de mostrar que a sociedade civil, embora difusa e heterogênea em suas demandas, tem como amálgama os valores democráticos que nos são tão caros.

Nesse contexto, a volta do voto impresso que insiste em negar os avanços tecnológicos de um mundo moderno, intrinsecamente digital, é um grande retrocesso. As urnas eletrônicas são auditáveis e a segurança do sistema eleitoral deve avançar – assim como em tantos outros processos sensíveis e relevantes – nos trilhos da crescente digitalização e das ferramentas de segurança cibernética em pleno e constante curso.

Afinal, o que está em jogo não é mais a economia. É a defesa do Estado de Direito e o respeito às instituições, que são o bastião da civilidade, dos direitos individuais e da liberdade. Contrariando James Carville, estrategista de campanha de Bill Clinton, que há quase 20 anos cunhou o mote que desde então roda o mundo, não é a economia, estúpido. Mas, sim, a defesa da democracia que nos une.

Publicidade

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.