O sistema de saúde precisa mudar o relacionamento com os pacientes e a forma como realiza pesquisas científicas para aumentar sua eficiência e produtividade. Essas foram as principais conclusões a que chegaram médicos, especialistas e acadêmicos durante o debate promovido pelo Estado, na terça-feira, em mais um evento da série Fóruns Estadão, desta vez, com o tema Gestão da Informação.
O secretário de Comunicação da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Cláudio Ferrari, defendeu a reformulação do relacionamento atual entre instituições, médicos e pacientes. Ele destaca que sem a integração dos dados fornecidos por laboratórios e hospitais, a agilidade no diagnóstico e no tratamento fica reduzida. A falta de um sistema integrado “mostra o desdém com que os dados são tratados” e isso, na visão do especialista, é inadmissível para o sistema de saúde do século 21.
“A gestão dos dados de vida deixa a desejar. Os dados são isolados e inacessíveis ao próprio paciente e cada vez que ele procurar atendimento, terá de repetir as mesmas informações que já tinha fornecido antes. Além disso, os dados são geralmente incompletos e coletados de forma aleatória”, diz Ferrari. Isso, entre outras coisas, acaba gerando de alguma forma maior custo para o sistema, seja ele público ou privado (por exemplo, com a repetição de procedimentos já realizados) ou, levando-se ao extremo, pode ser determinante na manutenção da vida do paciente.
Segundo o secretário, discute-se muito a melhora na prevenção de doenças, diagnósticos rápidos, equacionamento de custos, mas nada disso é possível sem informação de qualidade. “Enquanto estamos nas mãos do pediatra, temos nossas informações organizadas. O problema começa quando passamos a ser os gestores dos próprios dados.”
Num modelo ideal, segundo Ferrari, os pacientes cuidariam de suas informações de saúde e o sistema as estruturaria de forma integrada numa base de dados. “Passaríamos a ter um perfil completo do paciente, que poderíamos usar para obter melhores resultados.”
Para que isso se torne realidade no Brasil, o representante da SBOC prevê uma série de etapas a serem cumpridas. A primeira delas, já discutida atualmente entre os integrantes da sociedade, é o uso de big data (análise de grandes bancos de dados). “Precisamos ainda participar de decisões sobre quais serão os parâmetros essenciais a serem usados para fazer comparações de dados, além de montar um consórcio para estabelecer cooperação entre as empresas de saúde e buscar um parceiro tecnológico que nos ajude a entrar nesse novo mundo”, afirmou Ferrari.
Para o diretor da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale), Fabio Fedozzi, existem muitos dados no sistema de saúde, mas “falta expertise para analisá-los”. Fedozzi lembra da dificuldade dos médicos em coletar informações do paciente. “É uma problemática o médico ter de ficar preenchendo dados, mas esses dados são necessários para que sejam transformados em conhecimento. Não sei se isso levará ao melhor tratamento. Mas há, sem dúvida, um ganho.”
Segundo Fedozzi, toda a discussão de integração de dados acaba batendo na questão econômica. “Muitos pacientes são abandonados pelo plano de saúde quando uma doença grave é diagnosticada. Mas dentro de um plano de saúde, uma vida acaba pagando pela outra.”
Pesquisas clínicas. O médico oncologista e pesquisador do A. C. Camargo Câncer Center, Heleno Freitas, lembra que, com uma melhor coleta de dados dos pacientes, será possível ainda ampliar a quantidade de pesquisas clínicas feitas no Brasil. “Hoje, usamos os resultados dos estudos clínicos disponíveis, guias que são consenso nas diversas sociedades, e acrescentamos experiências individuais e dos locais em que cada pesquisador trabalha. Num passado não muito distante, a medicina era baseada somente na experiência individual dos doutores, mas atualmente não há mais espaço para isso.”
Entre as dificuldades de se fazer pesquisa no Brasil, Freitas aponta a burocracia. Para fazer uma pesquisa no País, segundo o oncologista, é necessária autorização de três instâncias, sendo que cada uma leva meses para a liberação. “Diferentemente de outros países, precisamos de uma aprovação local ou regional e outra de um órgão em Brasília chamado Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, além de necessitar da aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Nesse processo, a única instância ágil costuma ser a dos comitês de ética locais, que demoram em média um mês para conceder a autorização”, disse.
Freitas ainda levantou um ponto sensível sobre a gestão de dados que diz respeito à privacidade. Segundo ele, “o compartilhamento de dados no nível individual se torna um problema com relação à privacidade do paciente”. Ou seja, uma base integrada de informações, se por um lado torna o sistema de saúde mais eficiente, por outro acaba expondo dados individuais privados do paciente.
Efeito prático. Fedozzi, da Abrale, exemplificou como é importante a coleta de dados e de que forma a análise desses dados pode conduzir uma pesquisa, um tratamento ou uma campanha de saúde. “Traçamos os dados disponíveis e descobrimos, por exemplo, que, se nada for feito, o câncer será a principal causa de morte no País em 2029”, diz. “É claro que políticas públicas como a vacinação de HPV podem mudar essa projeção, mas informações assim ajudam a estipular programas e metas.”
A Abrale realizou 24 estudos com base em informações públicas de saúde nos últimos 12 meses de atuação. Atualmente, a principal fonte de dados públicos no Brasil é o Ministério da Saúde. A Abrale trabalha esses dados e publica estudos em seu site.
Como o mundo faz a integração das informações
Dinamarca. Cada região do país tem seu Prontuário Eletrônico de Paciente (PEP) que segue os padrões nacionais de compatibilidade. Atenção primária integrada com hospitais e farmácias também por região. Todos os cidadãos têm identificador único e acessam seus dados por portal online.
Israel. Os quatro planos de saúde financiados pelo governo que operam no país têm seus PEPs que são capazes de integrar dados da atenção primária, laboratórios e farmácias. Todos os cidadãos têm um identificador único e podem acessar parte de seus dados online. Apesar de todos os hospitais terem PEPs, estes ainda não estão integrados com o restante do sistema.
Espanha. Cartão único do cidadão, que carrega seu PEP. Através do portal online, os médicos acompanham as internações de seus pacientes. Integração de todos os níveis de atenção e entre os distritos de saúde permitindo que o recurso siga o paciente caso ele seja atendido em outro distrito.
Reino Unido. 2018: meta de integrar todos os dados da atenção primária e serviços de urgência e dar acesso a esses dados em plataforma online incluindo funcionalidades como agendamentos. 2020: integrar todos os demais serviços e dar acesso a todos os dados ao paciente. As instituições perdem financiamento se não demonstrarem avanço para a meta.
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