Aprovação de fusão Azul-Gol é inviável mesmo com restrições, avalia ex-conselheiro do Cade

Ricardo Ruiz, que relatou análises sobre fusões de companhias, diz que viabilidade de aprovação condicionada é muito complexa diante de histórico de processos; CEO da Azul diz que junção é uma ‘tendência global’ e Gol não quis se manifestar

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Foto do author Luiz Araújo

BRASÍLIA – A proposta de fusão entre Azul e Gol tem um desfecho muito provável se for julgada com critérios de processos similares: será reprovada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A avaliação é do ex-conselheiro do órgão, Ricardo Ruiz, que diz ver desafios de difícil superação se as análises mantiveram atenção ao que já foi julgado no órgão. “Acho muito difícil não levarem em consideração todas as decisões anteriores”, afirma.

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A atual jurisprudência sobre fusão de companhias aéreas é formada em grande parte por processos em que Ruiz atuou diretamente. Ele foi o relator das análises sobre Gol e Webjet (2012), Azul e Trip (2013) e TAM e Pantanal (2013), além de ter participado do julgamento da fusão entre TAM e Lan (2011). “O Cade tem uma longa história de casos que analisou, julgou e decidiu”, destaca o ex-conselheiro ao Estadão/Broadcast.

O CEO da Azul, John Rodgerson, considera que a junção é uma tendência global e afirma que a participação de 60% que a nova empresa alcançaria após eventual fusão é equivalente, e até menor, quando comparada à de outras companhias ao redor do mundo. Como exemplos, cita a Air Canada, Avianca na Colômbia e a Tap em Portugal. Procurada, a Gol falou que não iria comentar.

Ex-conselheiro do Cade, Ricardo Ruiz diz que debate sobre fusão de Azul e Gol é 'extremamente complicado' para o órgão Foto: Ricardo Ruiz/Arquivo pessoal

Fator concorrência

O tamanho e a força da companhia resultante da eventual fusão formam a principal preocupação que guiará o Cade. Será preciso demonstrar que há mecanismos capazes de superar os prejuízos que serão impostos à concorrência no mercado aéreo brasileiro. Somadas, Azul e Gol concentram 62% do fluxo de passageiros, competindo apenas com a Latam, que domina os 38% restantes praticamente sozinha.

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Já na atual configuração do mercado, com três empresas dominantes, há obstáculos significativos para o surgimento de outras concorrentes, explica Ricardo Ruiz. Para que uma operação seja economicamente viável, é preciso que uma companhia tenha acesso a slots em aeroportos fundamentais que servem como ponte para ligar todo o País: Congonhas, Brasília e Santos Dumont. Ocorre que todos esses já estão sobrecarregados.

O slot é o direito de pouso e decolagem em horários predeterminados. No Aeroporto de Congonhas, são 41% da Latam, 41% da Gol, 14,5% da Azul e os outros 3,5% da Voepass. Para garantir o uso integral, sempre que verificado que os slots estão sendo subutilizados, podem ser redistribuídos. “Com operações unificadas, elas terão capacidade maior de usar todos os horários, eliminando qualquer possibilidade de redistribuição”, avalia Ruiz.

As empresas interessadas em atuar no mercado brasileiro, confrontadas pela perspectiva ainda menor de acesso aos aeroportos fundamentais para estabelecer rotas lucrativas, tendem a ser inibidas. A solução para esse problema pode ser a imposição de as companhias devolverem parte dos slots para que a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) possa redistribuí-los.

Fator preço

Além da necessidade de acordos sobre mecanismos para que a concorrência não seja sufocada, as companhias precisam demonstrar que a fusão resultará em ganhos econômicos específicos da operação e provar que serão repassados aos seus consumidores. Desde o anúncio, representantes dizem que será possível economizar com compra de aeronaves e insumos, além de facilitar a ampliação de suas rotas, o que também seria benéfico aos clientes.

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Somadas, Azul e Gol concentram 62% do fluxo de passageiros hoje no País. Foto: Hélvio Romero/Estadão

“O principal interesse do consumidor é que a fusão não resulte em aumento de preços ou na redução da qualidade e quantidade de voos. Isso significa manter rotas, horários, assentos e evitar superlotação ou cancelamentos”, diz o ex-conselheiro do Cade. Mas, concentrando o mercado em apenas duas companhias, em vez das três atuais, torna-se mais fácil ampliar as margens de lucro.

“Excluir uma empresa reduz a concorrência efetiva e a potencial. Essas duas formas de concorrência inibem o aumento de preços, porque há a possibilidade de outra companhia oferecer uma passagem mais barata. Seja porque já opera na mesma linha, seja por ver potencial de mercado para iniciar a rota da concorrente. Isso é extremamente importante para regular os preços”, explica Ruiz.

O monitoramento dos preços, feito pela Anac, tem alcance limitado e, se houver suspeita de prática abusiva, esbarra em subjetividades que tornam punições pouco prováveis. O ex-conselheiro do Cade destaca que as oscilações de preços das passagens têm razões complexas, como as variações do querosene de aviação e as sazonalidades como as férias e feriados. “Torna difícil distinguir se um aumento da passagem decorre de elevação de custos ou de maior margem de lucro.”

Mesmo que a Anac consiga acompanhar e interpretar os preços, isso não impede ajustes negativos aos consumidores sobre itens como a frequência de voos, do número de aviões em operação, bem como sobre a qualidade dos serviços.

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Fator falência

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Há um terceiro pilar que entrará na base de argumentos oferecidos ao Cade, que é a necessidade de aprovar a fusão para salvar as companhias diante da fragilidade financeira encarada por ambas. Os conselheiros do órgão antitruste serão confrontados com alegações de que os prejuízos ao mercado serão muito maiores se as empresas perderem sustentação.

A Gol está, desde janeiro de 2024, em um processo de Chapter 11, equivalente nos Estados Unidos à recuperação judicial, com dívidas de R$ 20 bilhões. A Azul está em posição relativamente mais confortável, tendo anunciado há um mês que alcançou um acordo de R$ 11 bilhões com credores, afastando a possibilidade de recorrer a um processo de recuperação judicial.

Como as operações das duas companhias representam mais de 60% do mercado em disponibilidade de assentos, a falência de uma ou de ambas demandaria anos para que uma nova empresa conseguisse substituir o vácuo. “Esse é um debate extremamente complicado. Por quê? Porque o Cade vai ter que avaliar se existe de fato o risco de falência”, aponta Ricardo Ruiz.

Diante dos desafios elencados, o ex-conselheiro projeta ser inviável até mesmo uma aprovação com restrições, como foi feito em processos anteriores. “Definir restrições de forma a preservar a concorrência, manter eficiências e garantir benefícios ao consumidor é um grande desafio. Nessa estrutura de mercado, a viabilidade de uma aprovação condicionada parece bastante complexa”, afirma.

O outro cenário previsto por Ruiz é igualmente negativo para as pretensões de fusão. Ele diz que, dadas as possíveis duras e complexas restrições do Cade, as empresas poderiam optar por desistir da operação e buscar solução para suas dívidas por outros meios. “Uma decisão como essa seria celebrada no Cade com festas, porque elimina um problema concorrencial imenso na pauta de julgamentos.”