Arcabouço fiscal: ‘Fazenda precisa adaptar comunicação à nova regra, como faz o BC’, diz economista

Manoel Pires propõe que governo adote comunicação transparente e detalhada, semelhante à adotada nos relatórios trimestrais de inflação, para reduzir incertezas sobre a nova âncora

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Foto do author Adriana Fernandes
Foto: Dida Sampaio/Estadão
Entrevista comManoel PiresCoordenador do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV)

BRASÍLIA – Coordenador do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), o economista Manoel Pires propõe que o governo adote uma comunicação semelhante à adotada pelo Banco Central nos relatórios trimestrais de inflação para o melhor funcionamento do novo arcabouço fiscal.

“O BC tem uma comunicação muito mais bem datada, profunda, do que a da política fiscal. É importante ter um relatório mais recorrente com premissas claras”, diz Pires em entrevista ao Estadão. Segundo ele, o relatório pode projetar as variáveis fiscais e mostrar como as medidas adotadas irão ajudar no alcance da meta resultado das contas públicas.

No sistema de metas de inflação, o Banco Central divulga a ata da decisões de juros do Comitê de Política Monetária e, a cada três meses, o relatório de inflação com projeções e o balanço de riscos para o cumprimento das metas. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O economista Manoel Pires, pesquisador do Ibre/FGV Foto: Dida Sampaio/Estadão

Como no novo arcabouço fiscal o gasto é vinculado à arrecadação, não fica uma incerteza?

Seria muito importante o Ministério da Fazenda ter instrumentos mais modernos de comunicação em razão de o modelo ter características como a necessidade de ampliação da arrecadação, possivelmente o fim do contingenciamento, dificuldade maior de prever receita e aplicar o arcabouço, além de uma visão mais plurianual da política fiscal. Tal como faz o Banco Central (com a inflação) para projetar as variáveis fiscais e mostrar como as medidas adotadas irão ajudar no alcance da meta ao longo do tempo.

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Como seria esse instrumento?

Uma forma de reduzir a complexidade, melhorar a compreensão do mercado e dos agentes econômicos em relação à aplicação da regra é adaptar a comunicação da Fazenda à nova regra. Temos um bom exemplo institucional. O BC tem uma comunicação muito mais bem datada, profunda, do que a da política fiscal. É importante ter um relatório mais recorrente com premissas claras.

Como o relatório de inflação do BC?

Exatamente. Ter um relatório com cenários claros de projeções. Pode ser trimestral, divulgando no relatório as medidas que o governo pretende implementar e como é que elas impactam um cenário de referência, como esse aumento de arrecadação vai ser utilizado para os próximos anos. Então, tudo isso você pode tornar mais transparente. O governo diz como é que pretende usar o grau de arbitrariedade e discricionariedade para aplicar a regra. Isso ajuda na previsibilidade. Pode deixar mais claro o que está considerado, seja de cenário econômico ou de medida adicional, e como é que isso impacta a sua política fiscal para os próximos anos. Seria muito importante para diminuir confusão. Hoje, cada um está estimando, ao seu jeito, qual será o impacto de aumento de carga que a regra vai pressupor. Esse é o tipo de incerteza que um documento como esse pode reduzir, se não eliminar.

Mas esse papel não é do relatório bimestral de avaliação de receitas e despesas do Orçamento, que o governo é obrigado a enviar ao Congresso?

O relatório de avaliação foi moldado para informar sobre o contingenciamento (bloqueio de recursos). Tem um papel mais específico e não lida com um impacto de uma decisão fiscal para o Orçamento dos anos seguintes.

Existe alguma possibilidade de haver um ‘shutdown’ (paralisação da máquina) com essa regra?

Acho muito difícil. É um problema que tem hoje no teto de gastos. Será muito difícil que, no horizonte de aplicação da regra dos próximos três anos, tenha uma situação como essa, porque o natural é que a receita cresça. Eu acho que, se a economia ficar em recessão por muito tempo, deveria ter uma cláusula de escape. O governo deveria excluir crédito extraordinário da regra e não está claro se vai fazer. A pandemia da covid-19 mostrou que é importante.

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Alguns especialistas afirmam que a regra vai estimular muito a busca de receitas extraordinárias, que não são recorrentes e entram uma vez só no caixa do governo. Qual o risco?

Eu tenho uma visão diferente sobre esse aspecto da regra. Como será preciso aumentar o resultado primário permanentemente a cada ano, o meu entendimento é que o arcabouço privilegia a receita permanente. Se o governo apostar numa estratégia de receita temporária no ano seguinte, a necessidade de aumento de arrecadação vai aumentar. O resultado que terá que atingir é muito maior. O incentivo que está estabelecido na regra é para o governo conseguir fonte de financiamento permanente. Nesse ponto a regra é boa.

Como você avalia o debate sobre o aumento da carga tributária para a regra se sustentar?

A carga é medida como arrecadação total das esferas governamentais em relação ao PIB. Sob esse aspecto, ela vai aumentar se o governo for bem sucedido nessa estratégia. Por outro lado, como o governo está focando em setores que são subtributados, a carga não aumenta para a sociedade, mas sobe para quem está pagando pouco ou não está pagando nada. Eu acho que está se tentando normalizar a tributação para quem é subtributado. Então, a regra embute algum conceito de justiça tributária nas medidas que estão sendo estudadas.

O novo arcabouço tem uma regra frouxa do ponto de vista do controle das despesas?

Eu acho que a regra tem mecanismo para corrigir a frustração da “parametrização”.

O que é isso?

Se o governo não conseguir atingir as metas de resultado primário. Existe uma evolução na discussão de regras fiscais relacionada ao fato de que, quando se estipula uma regra muito dura, há muita dificuldade para cumpri-la quando a economia está sujeita a determinados choques. O arcabouço apresentado é flexível para lidar com algumas circunstâncias da economia. Naturalmente, ela fica um pouco mais frouxa se a economia sofrer com alguma flutuação de atividade econômica muito forte. Agora, é uma regra que, se mantida no médio prazo, consegue garantir a estabilidade da dívida, que é o que importa. À medida que as pessoas forem vendo que a regra vai sendo cumprida, o governo conseguindo comunicar bem como é que pretende implementar a política fiscal, vai ajudar a tirar a incerteza fiscal.

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O ministro Haddad está comprando uma briga muito grande de combate a privilégios? Vai colar lá no Congresso?

É muito difícil fazer previsão. O que o governo quer fazer é aumentar um pouco a justiça social, melhorar na margem a qualidade do gasto público fazendo gastos que são meritórios e melhorando o sistema tributário do País. É uma política econômica que tende a gerar mais crescimento e menos desigualdade. Agora, vai envolver algumas vitórias e derrotas. Nos últimos anos, tivemos uma discussão muito difícil (no Congresso) com relação à questão tributária. Mas é verdade também que nunca se tentou muito. Por exemplo, a discussão da tributação dos fundos exclusivos de investimento. Ela foi tentada lá atrás, mas o empenho foi muito pequeno para ser aprovar.

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