Elas parecem dinheiro, cabem na carteira como dinheiro e o governador promete que serão tratadas como dinheiro. Mas essas notas bancárias coloridas não são pesos, a moeda nacional depreciada da Argentina, nem dólares americanos, a moeda preferida de todos aqui.
Elas são os “chachos”, uma nova moeda emergencial inventada pelo governador populista de esquerda de La Rioja, uma província no noroeste do país que faliu quando o presidente “liberal libertário” Javier Milei cortou as transferências de verbas federais para as províncias, como parte de um programa de austeridade sem precedentes.
“Quem diria que um dia eu me encontraria desejando ter recebido pesos?”, disse Lucia Vera, professora de música, ao sair de um ginásio lotado de trabalhadores estaduais esperando receber seu bônus mensal de chachos no valor de 50 mil pesos (cerca de US$ 40).
Por toda a capital de La Rioja, adesivos de “Chachos aceitos aqui” agora aparecem nas janelas de tudo, desde supermercados e postos de gasolina até restaurantes sofisticados e salões de beleza. O governo local garante uma taxa de câmbio de 1 para 1 com pesos e aceita chachos para pagamentos de impostos e contas de consumo.
Mas há um porém. Chachos não podem ser usados fora de La Rioja, e apenas negócios registrados podem trocar chachos por pesos em alguns pontos de câmbio governamentais.
“Eu preciso de dinheiro de verdade,” disse Adriana Parcas, uma vendedora ambulante de 22 anos que paga seus fornecedores em pesos, depois de recusar dois clientes seguidos que perguntaram se eles poderiam comprar seus perfumes com chachos.
As notas trazem o rosto de Ángel Vicente “Chacho” Peñaloza, o caudilho (como são chamados as lideranças políticas latino-americanas que exercem seu poder de forma autoritária), famoso por defender La Rioja em uma batalha do século 19 contra as autoridades nacionais em Buenos Aires. Um código QR na nota bancária leva a um site denunciando Milei por se recusar a transferir a justa parcela de fundos federais para La Rioja.
Depois de assumir o cargo em dezembro de 2023, Milei rapidamente impôs sua terapia de choque em uma tentativa de reverter décadas de populismo esbanjador que levou a déficits monumentais na Argentina. Os cortes apertaram todas as 23 províncias da Argentina, mas escalaram para uma crise total em La Rioja, onde a folha de pagamento pública representa dois terços dos trabalhadores registrados e onde os impostos redistribuídos pelo governo federal cobrem cerca de 90% do orçamento provincial.
Com apenas 384,6 mil pessoas e pouca indústria além de nozes e azeitonas, La Rioja recebeu mais fundos federais discricionários do que qualquer outra no último ano, exceto Buenos Aires, lar de 17,6 milhões de pessoas. No entanto, a taxa de pobreza da província ultrapassa 66% - resultado, dizem os críticos, de um sistema de clientelismo usado há muito tempo para aplacar grupos de interesse em detrimento da eficiência.
Plano de resistência
Enquanto as reformas de Milei forçaram outras províncias a apertarem os cintos e demitirem milhares de funcionários, o governador Ricardo Quintela - um ambicioso membro do movimento Peronista, há muito dominante na Argentina, e um dos críticos mais ferrenhos de Milei - recusou-se a absorver o sofrimento provocado pela austeridade.
“Eu não vou tirar comida do povo de La Rioja para pagar a dívida que o governo nos deve”, disse Quintela à Associated Press, retratando seu plano de impressão de chachos como uma audaciosa resistência a 10 meses de salários desmoronando, desemprego subindo e miséria se aprofundando sob Milei.
La Rioja deu calote em suas dívidas em fevereiro e agosto. Um juiz federal de Nova York ordenou que a província pagasse quase US$ 40 milhões em indenizações a detentores de títulos americanos e britânicos em setembro. A Suprema Corte da Argentina está analisando o caso da recusa da província em cobrar dos consumidores preços altíssimos pela eletricidade, após a remoção dos subsídios por Milei.
“Há um caminho alternativo à crueldade das políticas que o presidente está aplicando”, disse Quintela.
Ele parecia confiante, falando enquanto a aprovação de Milei caía abaixo de 50% pela primeira vez desde que o radical economista chegou à presidência do país.
Mas, como Milei e seus aliados contam, a alternativa de Quintela oferece pouco mais do que um retorno ao costumeiro refúgio peronista de gastos imprudentes - e insolvência - que entregou a crise incontrolável que seu governo herdou.
“Vocês estavam acostumados a ter sua gravata apertada para vocês e seus sapatos polidos, mas agora, vocês têm de dar o nó vocês mesmos,” disparou Eduardo Serenellini, secretário de imprensa do escritório de Milei, a líderes empresariais de La Rioja em uma visita recente à província. “Quando o dinheiro acaba, acaba.”
Serenellini pegou uma nota de chacho, depois a jogou fora como fiapo.
A jogada do governador Quintela na remota província teve pouco efeito nas finanças federais da Argentina, mas isso poderia mudar se mais províncias com problemas de caixa adotassem a mesma medida, como aconteceu durante a terrível crise financeira da Argentina em 2001, quando um esquema de austeridade igualmente brutal fez com que mais de uma dúzia de províncias corressem para imprimir suas próprias moedas paralelas.
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Mas, ao contrário de duas décadas atrás, quando o ex-presidente Néstor Kirchner, um peronista, colocou um fim ao caos ao resgatar os “patacones”, “cecacores” e “boncanfores” por pesos, o presidente Milei descartou um resgate para La Rioja.
“Não seremos cúmplices de pessoas irresponsáveis”, Milei advertiu em uma entrevista recente ao canal de TV argentino Todo Noticias. Mas o presidente libertário acrescentou que não poderia impedir La Rioja de fazer o que bem entendesse, considerando que a constituição da Argentina permite tais soluções financeiras desesperadas.
Renda em queda, lojas fechando
O chacho foi lançado nas ruas em agosto, depois que a legislatura de La Rioja aprovou planos para emitir 22,5 bilhões de pesos da moeda para ajudar a cobrir até 30% dos salários do setor público.
Com a renda média de La Rioja caindo abaixo de US$ 200 por mês e lojas fechando por falta de negócios, as autoridades distribuíram 8,4 bilhões de pesos em bônus mensais em agosto e setembro, um esforço para ajudar os trabalhadores a lidar com a inflação anual de 230% da Argentina e estimular a economia local atingida.
Para incentivar o uso do chacho, as autoridades prometem pagar juros de 17% sobre as notas mantidas até o vencimento, em 31 de dezembro.
“Quanto mais nos aproximamos da data de vencimento, mais veremos a confiança pública no chacho aumentar,” disse o assessor do tesoureiro provincial, Carlos Nardillo Giraud.
A maioria dos trabalhadores do Estado entrevistados nas muitas filas de chacho que se espalhavam pelas calçadas de La Rioja no mês passado disse que queria se livrar das notas o mais rápido possível.
“Agora o chacho é uma alternativa, uma opção para pessoas que não conseguem chegar ao fim do mês,” disse Daniela Parra, professora de física de 30 anos, subindo na moto do namorado com os braços cheios de chachos, pronta para gastar tudo de uma vez no supermercado. “Quem sabe o que será no próximo mês?”
Nas ruas, os comerciantes disseram que se sentiam presos em um dilema. Rejeitar chachos significava afastar clientes com novo poder de compra em uma recessão profunda. Mas aceitar chachos significava encher as caixas registradoras com dinheiro que não vale nada para fornecedores estrangeiros e já está sendo negociado com desconto para pesos na rua.
“Eles formaram um sistema onde você é forçado a depender do Estado para tudo,” disse Juan Keulian, diretor do Centro de Comércio e Indústria de La Rioja. “Não há escolha em um lugar como este.”
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