Oitenta e sete auditores fiscais da Receita Federal assinaram uma carta endereçada ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e ao secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, na qual fazem uma advertência: a falta de negociação do governo os obrigará “a paralisar todos os projetos e apurações tributárias em andamento no combate às fraudes fiscais estruturadas”. A medida pode prejudicar a recuperação de créditos fiscais, comprometendo uma das apostas do governo de seu pacote de ajuste fiscal. Procurado, o Ministério da Fazenda afirmou que não vai se pronunciar.
Os auditores dizem na carta saber que o Ministério da Fazenda compreende a relevância do trabalho da Receita Federal e de seus profissionais. “Todavia, parece-nos evidente que existem outras áreas do governo que não entendem assim. Cumpre-nos destacar que o descaso para com o corpo funcional da Receita Federal do Brasil poderá impactar e inviabilizar sobremaneira o cumprimento do previsto no arcabouço fiscal.”
Em greve desde 26 de novembro último, os auditores fiscais haviam iniciado o movimento com uma operação padrão na aduana, atrasando a liberação de mercadorias em portos e aeroportos, conforme decisão tomada em assembleia pelo Sindicato de Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco Nacional). A ameaça agora de paralisar os projetos e apurações tributárias em andamento é justificado pelos auditores em razão do que eles chamam de recusa do Ministério da Gestão e da Inovação (MGI) de iniciar a negociação do reajuste do vencimento básico dos auditores e das auditoras. Procurado, o MGI afirmou que não vai comentar.
Diz a carta dos auditores: “Infelizmente a postura absurda e intransigente do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) ao não reconhecer aos Auditores Fiscal da Receita Federal do Brasil a justa recomposição do vencimento básico, impõe-nos a paralisar todos os projetos e apurações tributárias em andamento no combate às fraudes fiscais estruturadas, sendo a maioria desses em parceria com órgãos de persecução penal, cujas atuações republicanas e autorizadas pela justiça viabilizam a sinergia entre diversos órgãos de Estado”
Entre os casos investigados pelas unidades especializadas em combate às fraudes fiscais estruturadas da Receita federal estão as que envolvem a lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio de integrantes das cúpulas do Primeiro Comando da Capital (PCC), como o dos acusados na Operação Fim da Linha, que apura a captura de parte dos sistemas de transporte público de São Paulo pela facção criminosa.
Os auditores afirmam que “é inaceitável que sejamos a única categoria do serviço público federal sem direito à reposição das perdas inflacionárias”. Para ele, aceitar a posição do MGI significaria “concluir que a Receita Federal é o menos relevante dos órgãos do serviço público federal e que os auditores fiscais não merecem o respeito do governo”.
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De acordo com os auditores, as delegacias de fraudes estruturadas da Receita foram um “avanço da atual gestão da Receita Federal e permitem uma evolução no trabalho das antigas equipes regionais especializadas de combate a fraudes (Efraus)”. Segundo eles, a nova estrutura “proporciona ainda mais resultados de efetiva recuperação do crédito tributário, mudança de comportamento tributário setorial e inserção positiva da imagem institucional para a sociedade brasileira”.
“Nós, auditores fiscais integrantes das unidades especializadas em combate às fraudes fiscais estruturadas sabemos da importância dos nossos trabalhos, os quais apresentam resultados efetivos de curto prazo em termos de arrecadação, melhoram o ambiente de negócios e, ainda, combatem o crime organizado ao impactar suas finanças”, prossegue a carta.
Ela segue dizendo que os auditores têm “plena consciência” de que as apurações precisam ser feitas com “agilidade e tempestividade”. Foram por esses motivos que as atividades relacionadas ao combate às fraudes fiscais estruturadas para os casos emblemáticos haviam sido mantidas até então, apesar da greve, por orientação do próprio Sindifisco.
Mas, segundo os auditores, em razão do que chamam de “falta de respeito do MGI na presente negociação”, eles decidiram mudar de postura e “parar completamente nossas atividades exigindo que tenhamos o mesmo tratamento dos demais servidores públicos, ou seja, receber o básico direito a reposição das perdas inflacionárias negada somente a nossa categoria”.
A carta conclui afirmando: “Desta forma, informamos que estão sendo suspensos os projetos sistêmicos em áreas estratégicas, bem como os projetos de enfrentamento de fraudes tributárias bilionárias que inviabilizam a concorrência leal em alguns setores específicos da economia. A desarticulação de organizações criminosas que vendem falsos créditos e lesam os cofres públicos em bilhões de reais também não contará com a imprescindível atuação dos auditores das unidades especializadas em combate às fraudes fiscais estruturadas”.
O documento lista ainda outros prejuízos ao Fisco: “Também restarão prejudicados, neste momento, os trabalhos que envolvem o bloqueio dos bens do crime organizado; sabidamente uma das formas mais eficazes de combatê-lo. Em virtude do sigilo envolvido nas apurações em andamento, não poderemos detalhar os valores e as características dos casos que estão sendo suspensos em função da nossa mobilização sindical, os quais poderão se tornar inviáveis caso a solução do presente impasse não seja rápida”.
Os auditores afirmam, por fim, que “ao forçar a paralisação das unidades especializadas em combate às fraudes fiscais estruturadas, o MGI também beneficiará o crime organizado, os operadores e os beneficiários das fraudes tributárias em detrimento dos bons contribuintes e da sociedade brasileira em geral”. E concluem: “Esperamos que o Ministério da Fazenda consiga reverter posicionamento tão prejudicial por parte do MGI”.
Em anexo à carta, os auditores listaram os resultados de uma série de operações feitas pelos setores de combate a fraudes estruturadas, como a Operação Saldo Negativo, cuja 1ª fase foi deflagrada em novembro de 2019 e a 2ª fase concluída em dezembro de 2021, que desarticulou uma organização criminosa que vendeu falsos créditos tributários para pelo menos 4,5 mil empresas de 600 municípios.
“O trabalho, realizado por auditores de 2 equipes especializadas, mostra que a redução em fraudes deste tipo evitou mais de R$ 4 bilhões de prejuízo aos cofres públicos, sendo aproximadamente metade deste valor fruto da mudança de comportamento de contribuintes. Além disso, foram bloqueados aproximadamente R$ 70 milhões dos criminosos.”
Outra operação citada foi a Expresso, deflagrada em março de 2021 contra uma organização criminosa que emitiu mais de R$ 6 bilhões em notas frias no setor cafeeiro. “Além da recuperação de mais de R$ 200 milhões sonegados, a atuação da RFB em parceria com órgãos de persecução penal evitou sonegação estimada em cerca de R$ 400 milhões em 2021.”
Os auditores mencionaram ainda as operações Descarte – 400 procedimentos fiscais, entre fiscalizações e diligências, com lançamentos que superam R$ 1,7 bilhão –, Metalmorfose, que se encontra em andamento e realizou lançamentos que chegam a R$ 2 bilhões, e a Fake Money, que levou à regularização de, aproximadamente, 100 mil contribuintes e a mais lançamentos de crédito tributário, que alcançaram R$ 1,5 bilhões.
“Assim como a Operação Descarte, diversos trabalhos recentes realizados pelas equipes de fiscalização de combate à fraude que identificaram, além de crimes tributários, desvios de recursos públicos, como as operações Alcatraz, Black Flag e Hemorragia, subsidiando os órgãos de persecução penal de acordo com a legislação. Em outros casos, recebemos, com a devida autorização judicial, material de investigação que permitiu a identificação da sonegação oriunda desses crimes e autuação em valores que já se aproxima de R$ 30 bilhões”, concluíram os auditores.
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