A babel tributária brasileira vai além dos múltiplos impostos que, por vezes, incidem sobre uma mesma atividade (como o PIS e o Cofins) e que estão no centro do debate da reforma tributária. A existência de um imbróglio na área jurídica torna o sistema brasileiro ainda mais complexo, segundo advogados ouvidos pelo Estado.
Para o advogado Rafael Pandolfo, professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), a confusão jurídica ocorre porque quatro “sistemas” tributários coexistem no País e acabam se sobrepondo – o sistema criado pelo Congresso (através das leis), o definido pela Receita Federal (que na teoria deveria apenas regulamentar as leis), o fixado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (o Carf, que atua como o Tribunal da Receita Federal) e o determinado pelo Judiciário (via decisões).
“Comparo essa existência de vários sistemas com um filho que tivesse quatro pais. A qual deles ele iria obedecer se recebesse ordens distintas? Como iria se sentir seguro?”, questiona Pandolfo.
O advogado cita como exemplo dessa complexidade a clássica discussão de especialistas da área sobre a definição de “insumo” para cobrança de PIS/Cofins. O cálculo para pagamento dos dois impostos é feito com base no total da receita bruta da empresa contribuinte subtraindo os insumos – sobre essa diferença, incide a alíquota de 1,65% do PIS e de 7,6% do Cofins.
O problema é que a lei não define o que é insumo e o ato normativo da Receita Federal que regulamente a lei não inclui no conceito serviços como o de marketing, deixando uma lacuna para que as companhias reclamem no Carf e na Justiça.
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“Nesse caso, a Receita ‘legislou’ através da instrução normativa ao definir o que é insumo”, diz o economista Bernard Appy, do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF). De acordo com dados da instituição, hoje, o montante do contencioso tributário no País, considerando todos os valores em litígio, fica entre R$ 2 trilhões e R$ 2,5 trilhões (de 33% a 42% do Produto Interno Bruto).
A advogada Vanessa Canado, também do CCiF, afirma que, na teoria, a divisão de tarefas entre Receita, Carf, Legislativo e Judiciário funciona bem, mas que, em decorrência de as leis serem mal redigidas no País, acabam aparecendo problemas, como o do conceito de insumo. “Há essa questão da redação da lei, que muitas vezes são mal feitas porque, por exemplo, uma emenda é colocada de última hora para a lei ser aprovada (no Congresso) mais facilmente.”
Vanessa destaca ainda que, algumas vezes, são feitas interpretações das leis que deturpam seus significados. “Como o sistema tributário é capturado por vários sistemas, acaba virando um monstro. Isso acontece muito na área tributária devido à quantidade de interesses que ela envolve”, acrescenta.
A professora de direito tributário da Fundação Getúlio Vargas Tathiane Piscitelli destaca que questões como a definição de insumo deveriam ser corrigidas por uma lei, não por um ato normativo da Receita. Ela, porém, não vê a coexistência de quatro sistemas tributários, mas sim uma operacionalização desordenada de um único sistema.
Constituição. Para o advogado Marco Behrndt, sócio da área tributária do escritório Machado Meyer, todo o imbróglio tem origem na Constituição, que, diz, é detalhada demais. “Se, na Constituição, houvesse apenas os princípios básicos (de tributação), seria mais simples. Se não houver alteração na nossa Constituição, não há como alterar o ordenamento jurídico tributário.”
O deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), relator da reforma tributária, afirma que sua proposta de criar um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) nacional – que unificaria ICMS, ISS, IPI, Cofins, Cide, Salário-educação, IOF, PIS e Pasep – resolveria o problema jurídico do sistema.
“A nova proposta elimina de 80% a 90% do contencioso ao unificar os impostos, porque hoje há uma lei do ICMS em cada Estado do País e uma de ISS para cada município, além dos milhares de desdobramentos de cada uma em instruções normativas”, diz Hauly.
Para a advogada Vanessa Canado, a reforma deve diminuir o contencioso, mas ainda será preciso cuidado com a redação das leis.
PARA ENTENDER
BRASÍLIA - A necessidade de uma reforma tributária é pauta de dez entre dez parlamentares. Mas, nenhuma proposta de mudança no Sistema Tributário Nacional, principalmente no ICMS (principal tributo cobrado pelos Estados) consegue avançar no Congresso devido aos inúmeros interesses divergentes envolvidos.
Desde que assumiu o governo, o presidente Michel Temer, pressionado por aliados, tem prometido apoiar a reforma, mas a ideia não encontra apoio na equipe econômica. O Ministério da Fazenda considera que é preciso antes fazer a reforma da Previdência. A equipe do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, quer apresentar um projeto mais simples de modificação no PIS/Cofins. A proposta já está pronta, mas enfrenta resistências do poderoso setor de serviços que não quer ver sua carga tributária elevada com a mudança. A área econômica não consegue espaço político para encaminhar o texto ao Congresso.
Integrantes do governo dão como pouco provável o avanço de uma proposta ampla de reforma, como a do deputado Carlos Hauly (PSDB-PR), até o final do governo. O tema, no entanto, deve ganhar espaço nos debates das campanhas eleitorais.
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