Antes de ficar conhecido como um dos responsáveis pelo sucesso do Plano Real, o economista Edmar Bacha foi presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1985 e 1986, época tumultuada de hiperinflação e de planos econômicos que não deram certo, mas que também forçou a consolidação do órgão para adquirir a respeitabilidade que se manteve por décadas.
Nos dois últimos governos, no entanto, a instituição passou por novas provações. No governo Jair Bolsonaro, houve ataques às pesquisas elaboradas e o corte de orçamento para a realização do Censo.
Agora, uma nova polêmica apareceu. Em palestra para funcionários do IBGE realizada em outubro e que entrou no debate nacional nos últimos dias, o novo presidente do instituto, Márcio Pochmann, defendeu “modernizar” a forma de divulgação dos dados da instituição e comentou que buscou exemplos de como trabalhar com pesquisas na China.
“Tivemos oportunidade, num diálogo com a direção do Instituto Nacional de Estatística da China, que está entrando em curso um censo econômico que visa justamente identificar, capturar o valor agregado das atividades digitais”, disse Pochmann, na palestra. As declarações provocaram reações de vários especialistas, que expressaram preocupação com os efeitos de alterações nos métodos de pesquisa do IBGE.
Sobre a polêmica, Bacha comentou ao Estadão que qualquer mudança promovida pela atual gestão pode causar problemas e trazer perda de credibilidade para o órgão. Confira os principais trechos da entrevista:
As declarações do presidente do IBGE sobre alterar a forma de divulgação de dados preocupam de alguma forma?
Já pensou se o Pochmann resolve mexer no IPCA? Toda a estrutura de financiamento do governo é baseada no IPCA. Mesmo que fosse para fazer alguma melhoria, seria um tsunami no mercado financeiro. Não estou dizendo que a metodologia do IPCA é perfeita, mas, sendo ele quem é, qualquer tentativa de mudar qualquer coisa no IBGE vai criar confusão.
Isso significa que o fato de ele ter ligação política prejudicaria qualquer trabalho, mesmo se bem intencionado?
Ele não simplesmente tem ligação política. Ele é um político. Foi candidato três vezes à Prefeitura de Campinas e a deputado estadual por São Paulo. O problema é o histórico dele, como foi a atuação dele à frente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), quando fez, por exemplo, um concurso completamente ideológico e dirigido. Pode-se até argumentar que os técnicos não vão deixar ocorrer uma mudança do IPCA, e não vão deixar mesmo. Mas só de mencionar o assunto ou de falar de trazer técnicos da China para aprimorar o trabalho com os dados, todo o sistema estatístico nacional vai ficar sob suspeita.
A burocracia do IBGE não pode evitar que se tire a credibilidade do instituto?
Existem coisas que o presidente do IBGE pode fazer e que os técnicos não terão como interferir. Por exemplo, o último censo mostrou que a população de vários municípios caiu. Com isso, o dinheiro do Fundo de Participação dos Municípios para eles vai diminuir. Deve haver agora centenas de demandas para a recontagem da população. E quem diz onde e o que recontar é a gestão do IBGE.
No seu período à frente da instituição, havia alguma blindagem dos números públicos?
Quando fui presidente do IBGE, no tempo do Plano Cruzado, o Dilson Funaro, ministro da Fazenda, se irritou com a Fundação Getulio Vargas e transferiu a inflação oficial para o IBGE (em novembro de 1985, o IPCA passou a ser o indexador oficial do País). Quando vi aquilo, criei um conselho de altíssimo nível para me fiscalizar, com seis pessoas. Eram dois economistas, dois representantes empresariais e dois de centrais sindicais. Existia uma preocupação com a credibilidade dos dados. O Delfim Netto (ministro da Fazenda entre 1967 e 1974) havia manipulado os dados de inflação em 1973.
É possível fazer algo parecido agora?
Li recentemente um artigo (assinado pelo vice-diretor do Instituto Brasileiro de Economia, FGV-Ibre, Vagner Laerte Ardeo, e pelo pesquisador associado do FGV-Ibre e ex-presidente do IBGE Roberto Luís Olinto Ramos) que levanta a ideia de se criar uma agência responsável pela estatística nacional, que regule e integre a produção da informação oficial criada em diversos órgãos. Uma agência é muito melhor que um conselho como eu criei.
Isso blindaria o IBGE da influência política?
Não me aprofundei para saber se seria a melhor ideia, mas é para ser conversada. Gostei da proposta. É bem fundamentada, e houve seminários no FGV-Ibre sobre o assunto. Existe uma necessidade de blindagem institucional.
Essas discussões no FGV-Ibre sobre a criação de uma autoridade estatística nacional envolveram economistas de diversas matizes. É possível que uma ideia como essa fique acima das ideologias?
Independente do pensamento, querer blindar as contas nacionais é uma boa ideia. É um perigo deixar isso aberto às influências políticas. Outra coisa que está no artigo é a importância de integrar dados de diversas áreas do governo. A Receita Federal levou anos para começar a transmitir dados para o IBGE, e convênio é informal. É preciso uma estrutura para legitimar tudo isso. Hoje em dia, o grosso da informação é criado dessa forma. É só pensar no Rais (Relatório Anual de Informações Sociais, elaborado com dados enviados pelas empresas para o Ministério do Trabalho e Emprego) e todos os estudos com os mercados de trabalho. Seria importante compatibilizar Rais com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE. Há ainda muitos dados valiosos no Ministério da Saúde, que deveriam ser oficiais e integráveis com o IBGE.
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