‘Banco Central está com as mãos amarradas’, afirma José Júlio Senna

Com o tamanho da expansão fiscal na economia, ex-diretor do BC afirma que é difícil saber qual patamar necessário da taxa básica de juros capaz de levar a inflação à meta

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Foto do author Luiz Guilherme  Gerbelli
Atualização:
Foto: Werther Santana/ Estadão
Entrevista comJosé Júlio SennaChefe do Centro de Estudos Monetários do FGV/Ibre e ex-diretor do BC

Chefe do Centro de Estudos Monetários do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre), José Júlio Senna diz que o Banco Central está de “mãos amarradas” na condução da política monetária dado a situação do quadro das contas públicas no Brasil.

Com o tamanho da expansão fiscal na economia brasileira, ele afirma que é difícil saber qual patamar necessário da taxa básica de juros capaz de levar a inflação à meta. “O Banco Central está com as mãos amarradas”, afirma Senna, que foi diretor da instituição. “Não está totalmente fora de combate. Óbvio que não está ou já estaríamos numa situação mais grave.”

Na avaliação dele, o Comitê de Política Monetária (Copom) deve repetir a decisão desta quarta-feira, 6, de aumentar a Selic em 0,50 ponto percentual e promover mais três altas na mesma magnitude.

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão

Depois da alta de 0,25 na sua última reunião, como o Copom chegou na reunião de hoje?

A retomada do ciclo de juros estava sendo demandada desde o Copom de julho. Na minha opinião, cabia perfeitamente para o BC sinalizar um ajuste para setembro. E as razões são muito claras para todo mundo: as expectativas estavam desancoradas, projeção de inflação acima da meta, economia aquecida, especialmente o mercado de trabalho, e uma enorme incerteza fiscal. Na opinião de alguns membros do Copom, o balanço de risco já era assimétrico. Então, eu acho que cabia perfeitamente sinalizar alguma coisa para setembro. Mas o BC preferiu não fazer isso.

A minha interpretação é que aquele momento era parecido com o de agora. O governo se mexendo muito para questões fiscais. E eu fico com a impressão de que o BC ficou inibido, não queria fazer um movimento de sinalizar um aumento de juros para setembro. O mundo inteiro derrubando o juro, e a gente sinalizando um aumento em setembro. Poderia parecer uma provocação. Só que o tempo foi passando. Esse quadro descrito, de desancoragem das expectativas e fiscal, foi se agravando. Não teve jeito. Tornou-se inevitável fazer um aumento de juros em setembro. A preocupação que havia na época - hoje acho que tem essa pergunta também - é a magnitude do movimento.

O BC acertou ao subir os juros em 0,25 ponto porcentual em setembro?

E o que me parecia na época era de que um ajuste de 0,25 ponto porcentual seria entendido como uma coisa muito modesta. E uma razão básica para isso é que, desde o início desse ajuste de política monetária, do combate ao surto inflacionário que veio com a pandemia, o BC não fez uso de 0,25 ponto porcentual, exceto no final, na hora de começar a reduzir a taxa básica. Mas veio (a alta de) 0,25 e essa preocupação desapareceu de maneira instantânea.

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O que ajudou a reduziu essa preocupação?

Porque a decisão sobre o tamanho do ajuste veio acompanhada de algo bastante importante, como, por exemplo, a declaração de que o hiato do produto (o espaço que o PIB tem para se expandir sem que estimule uma inflação) estava positivo, e de que o balanço de risco tinha ficado assimétrico. E houve algo que as pessoas não destacaram muito: acrescentam no comunicado a informação de que o quadro atual demanda uma política mais contracionista. A direção era muito clara e precisava de um sinal realmente mais forte. Fizeram (uma alta) 0,25 ponto porcentual, mas ela veio acompanhada de muita coisa que tirou toda a apreensão de ser visto como uma coisa modesta ou tímida.

E daqui em diante, quais serão os próximos passos?

Eu acho que teremos mais aumentos de 0,50 ponto porcentual, perfazendo, talvez, um total de quatro ajustes de 0,50. Em dezembro, é natural repetir o aumento de 0,50 ponto. É pouco provável que, independentemente do que venha a ser anunciado no campo fiscal, o quadro mude substancialmente até o final do ano. E aí entramos em outra questão. No começo de 2025, tem um novo presidente (do BC). E é da tradição que os comandantes de autoridade monetária precisem dar sinais fortes logo na largada para, digamos assim, adquirir credibilidade e gerar confiança nessas autoridades. A minha interpretação é de que o futuro presidente Galípolo valoriza muito isso. Tem se manifestado a respeito disso, de construir credibilidade. Então, ele não vai querer destoar. Ele vai fazer 0,50 (em janeiro). E eu acho que, até março, ele fará de novo. Tudo, claro, dependente do andamento das coisas. Muita água passa debaixo da ponte num período tão significativo. Agora, o que a gente não sabe e não consegue saber é até onde levar a Selic.

Como assim?

Eu faço uma divisão. Primeiro, envolvendo a estimativa da Selic que seria capaz de promover a convergência da inflação para a meta. A segunda dificuldade é de natureza mais política. Qual é a encrenca? O enorme peso que o fiscal tem tido no comportamento da economia brasileira nos mais variados campos. Na minha opinião, não é exagero dizer que os três poderes da República interferem nas contas públicas. Executivo e Legislativo têm um peso maior. Isso começou com a PEC da Transição. O Executivo, antes de tomar posse, já havia conseguido expandir o gasto público em quase 1% do PIB. Obviamente, com o apoio do Congresso.

Hoje, essa parceria parece muito nítida no chamado problema parafiscal, com aquela questão dos fundos públicos de que o governo tem lançado mão ultimamente. Ninguém está fazendo nada ilegal. É tudo com a aprovação do Congresso. E o Supremo, que volta e meia, interfere de um modo ou de outro nas contas públicas. Você tem visto os economistas — e o próprio Banco Central — errar a previsão de PIB. Na verdade, a dificuldade não é propriamente prever a atividade econômica, a dificuldade é prever o fiscal. O lado fiscal tem dado impulsos extraordinários para a economia. Os erros de previsão do comportamento do PIB seriam bem menores, bem menos significativos, se tivesse sido possível prever a expansão fiscal. No fundo é isso, errou o fiscal, errou um monte de outras coisas. Para ilustrar um pouco, a relação dívida bruta/PIB, nesses dois primeiros anos do governo, sofrerá uma alta de sete pontos porcentuais, passando de cerca de 72% do PIB para aproximadamente 79% do PIB. Essa alta estava longe de ser prevista. E essa dificuldade de prever o fiscal é que dificulta entender o que promoveria a convergência da inflação para a meta.

Poderia detalhar um pouco dessa dificuldade?

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Porque o fiscal bate em três campos distintos e extremamente importantes. Primeiro, bate na demanda agregada e toda a história do hiato (do produto) virar positivo. A declaração de que o hiato ficou positivo e a economia está muito aquecida, em grande parte, é porque o fiscal foi muito forte. Mas o fiscal não bate só ali. Ele bate na percepção de risco País, justamente por causa do aumento do endividamento (do Brasil) e, com isso, bate no câmbio, que é um elemento importante na inflação.

E a dificuldade envolvendo a questão política?

Tem a ver com ser viável praticar um nível elevado de juros. Temos dificuldade de estimar a Selic, mas, de qualquer modo, sabemos que é um nível alto. Há economistas que falam em 12,75%, mas tem gente que pensa em 13,5%, 14%. A minha pergunta é a seguinte: existem condições efetivas para levar os juros para esse patamar? Eu estou me referindo a uma restrição de natureza política e gostaria de trazer para o debate o episódio dos (juros a) 13,75%. A Selic no patamar de 13,75% foi decretada no começo de agosto de 2022 e esse nível foi mantido nas sete reuniões seguintes do Copom. Quando chegou em agosto de 2023, começou o ciclo de baixa que levou a Selic até 10,50%. As condições para iniciar o ciclo de baixa não estavam inequivocamente preenchidas. Isso não tem dúvida.

Por que não estavam preenchidas?

As projeções para o horizonte relevante estavam em 3,30% e 3,40%, acima da meta. Curiosamente, no período em que a Selic ficou em 13,75%, a inflação corrente cedeu bastante. Em boa medida, isso se deveu à reversão dos choques que vieram com a pandemia. E há um ponto fundamental na história. O regime de meta de inflação é igual ao regime de meta da projeção de inflação, porque é a variável que você consegue controlar minimamente. Todo o espírito da política monetária anti-inflacionária é de olho na inflação lá da frente. A inflação corrente caiu, mas a inflação projetada para o horizonte relevante não caiu. Não estou dizendo que não havia motivos para começar o ciclo de baixa, apenas estou dizendo o seguinte: não era uma situação que inequivocamente clamasse pelo início de um ciclo de queda.

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Então, por que foi preciso começar a redução da Selic?

Porque a corda estava sendo muito esticada. E isso me traz para a discussão de agora. O juro real já estava alto há muito tempo. Uma corda esticada por muito tempo começa a colocar em risco a independência da instituição. Os dirigentes da autoridade monetária têm de se preocupar com isso. Para mim, ficou muito claro naquela época que não dava para ir muito longe. As condições não eram propícias quando a gente pensa nas projeções de inflação. E, agora, continuamos com as projeções acima da meta, as expectativas estão desacordadas, o balanço de risco é assimétrico, a economia está aquecida. No fundo, esse problema não existiria se, como resultado das ações do Executivo e do Legislativo, principalmente, mas também do Supremo, ou seja, dos poderes da República, não ocorresse o aumento de sete pontos relação dívida/PIB em dois anos. Seria muito mais fácil conduzir a política monetária.

Ex-diretor do BC não vê cenário de dominância fiscal no País 

Mas é um cenário de dominância fiscal?

Acho que estamos longe da situação de dominância fiscal. Estamos bem distantes, e eu entendo que o quadro é reversível. Se toda essa discussão do pacote fiscal que está sendo debatida nesses dias, se vier um negócio robusto e tiver sequência e credibilidade, pode-se reverter toda essa situação. Mas, no momento, uma coisa é certa: o Banco Central está restrito em suas ações, de algum modo. Podem se fazer exercícios, simulações, mas já existem sérias dificuldades para estimar a Selic que produziria a convergência (à meta), até onde o BC quer chegar e, principalmente, praticar o juro alto que sairia desse exercício.

E o episódio dos (juros a) 13,75% demonstra isso com muita clareza. Primeiro, você levantou o juro, ficou com ele lá em cima, a inflação cedeu, mas o básico não cedeu, que foi a projeção. As expectativas foram piorando, o lado fiscal foi piorando e você teve de retomar o ciclo de alta. O Banco Central do Brasil hoje já tem restrições importantes ao que ele pode fazer. Imagine uma hipótese que você descubra que o nível de juro que leva a inflação para a meta é 14%. Será que o momento permite que você leve a Selic para 14% e mantenha os juros nesse patamar até surgirem sinais de que a convergência vai acontecer? Eu acho que não. O Banco Central está com as mãos amarradas. Não está totalmente fora de combate. Óbvio que não está ou já estaríamos numa situação mais grave.

E agora como fica todo esse quadro com a eleição do Trump?

É fundamental corrigir essa situação logo, para que o Banco Central possa recuperar seu grau de liberdade e seja possível controlar a inflação com juros não tão altos. O fiscal é indispensável para isso. E, agora, a vitória do Trump torna a virada do campo fiscal ainda mais urgente, porque, entre outras coisas, a política econômica anunciada por ele leva a um dólar mais forte como já temos visto nos últimos tempos. Períodos de dólar forte são sempre ruins para economias emergentes, especialmente para o Brasil.

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