O estoque de imóveis retomados pelos bancos cresceu e chegou ao maior nível em quatro anos. Embora o aumento não represente uma crise, como a observada na última década – marcada por recessão, distratos e inadimplência –, especialistas apontam que se trata de um efeito “natural” da expansão das vendas e dos financiamentos nos últimos anos. Ainda assim, a situação gera custos para os bancos e impõe o desafio de encontrar compradores para essas propriedades, tarefa que se torna mais difícil em um cenário de juros elevados.
Juntos, os bancos acumularam um estoque de R$ 79 bilhões em imóveis até novembro de 2024, último dado disponível, segundo o Banco Central. O montante era 10% maior que no mesmo mês de 2023 e 20% acima do fim de 2022. Esse estoque equivale a um terço do valor de todos os empreendimentos lançados no Brasil no último ano inteiro.
Na Caixa Econômica Federal, responsável por dois a cada três financiamentos no Brasil, o estoque cresceu com maior intensidade: passou de 20,2 mil unidades em 2022 para 34,8 mil em 2023 (alta de 72%) e chegou a 50,4 mil em 2024 (alta de 150% no acumulado), conforme dados abertos pelo banco ao Estadão/Broadcast. Para arcar com tudo isso, a Caixa gastou R$ 443 milhões com IPTU, condomínio e demais encargos no ano passado.
Esse estoque tem origem, principalmente, na execução de dívidas de pessoas físicas e empresas que não conseguiram arcar com o financiamento. Durante a pandemia, os bancos deram descontos e prorrogaram parcelas, o que evitou uma crise ainda maior. Depois desse período, acabou a tolerância com a inadimplência, e as execuções de dívidas recomeçaram.

De acordo com dados do Banco Central, a inadimplência no financiamento imobiliário teve um pico em 2023, chegando a 1,54%. A maior elevação foi em financiamentos feitos com a utilização do FGTS. A inadimplência desse financiamento subiu de 1,99% em 2019 para 2,63% em 2023. No ano passado, estava em 2,06%.
Os imóveis que vão a leilão raramente são aqueles que foram comprados recentemente. Normalmente, são propriedades financiadas de 2021 para trás, talvez até 15 anos atrás, explicam especialistas.
Processo
Após a retomada, ocorrem até dois leilões para a liquidação do imóvel. No primeiro, a propriedade é ofertada pelo seu valor de mercado, conforme laudo de uma empresa credenciada. Se não for comercializado, vai para o segundo leilão, sendo ofertado pelo valor da dívida do financiamento mais custos processuais. Nesse momento, o desconto pode chegar a 60% ou 70%.
Mesmo assim, muitas unidades não são liquidadas e vão para os estoques dos bancos com a nomenclatura de ‘Bens Não de Uso Próprio’, ou BNDUs. É isso que os números do BC mostram. Por regra, os bancos ainda têm até mais dois anos para vender o imóvel. Depois, deve incorporá-lo ao seu balanço, o que pode gerar prejuízo contábil.
Setor permanece saudável
Embora o BNDU seja indesejável, o aumento do estoque não é preocupante, afirma o presidente da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), Sandro Gamba. “Não podemos esquecer que a carteira de crédito imobiliário também cresceu muito nos últimos anos”, diz. “O aumento dos BNDUs vem em decorrência disso. Não tem pressão. É algo natural”, acrescenta Gamba.
Quando o tema é analisado em termos relativos – proporção dos BNDUs em relação ao tamanho da carteira de crédito imobiliário – a história muda para o rumo oposto. Em vez de crescimento, há uma queda. O estoque de imóveis retomados representava 6,8% de todos os financiamentos no fim de 2024, patamar menor que no fim de 2023 (7,1%), 2022 (7,1%), 2021 (9,2%) e 2020 (13%).
Leia mais
Portanto, o mercado de crédito tem crescido muito mais que as retomadas de bens, um indicativo de saúde do setor, atesta o consultor e ex-vice-presidente de habitação da Caixa, José Urbano Duarte. “Sem dúvida, o BNDU é um problema. Mas, ainda assim, está menor, historicamente”, destaca. O auge foi em março de 2019, quando os BNDUs chegaram a R$ 112 bilhões, o equivalente a 18,5% da carteira – aí, sim, uma crise flagrante, diz. Hoje, o porcentual é o menor em quase uma década.
Urbano afirma ainda que os bancos precisam ser ágeis na revenda destas propriedades, pois elas têm custos relevantes. “Temos um quadro que está longe de ser crítico, mas precisa ser objeto de atenção”, defende. “A eficiência do banco na revenda passa a ser importante para fins de provisionamento”, observa.
A Caixa não concedeu entrevista sobre o tema, mas enviou uma nota rechaçando a hipótese de crise. “O aumento do volume de retomada de imóveis se relaciona ao crescimento da carteira. Destacamos ainda que no período de pandemia a atuação do banco no setor foi restringida, o que também impactou para que houvesse um volume maior nos anos seguintes”, afirmou.
O diretor da agência de classificação de risco Fitch, Claudio Gallina, concorda que o mercado permanece saudável, apesar do estoque crescente de BNDUs. “Não vejo uma bolha de crédito dos bancos. A carteira é relativamente saudável”, diz, citando como exemplo o fato de que a inadimplência no financiamento imobiliário fechou 2024 em apenas 1%, menor patamar já registrado.
Pela frente, será preciso monitorar a capacidade dos bancos liquidarem estes imóveis, o que tende a ser mais difícil em um ambiente de juros elevados, que geralmente afugenta compradores que buscam moradia ou investimento. “É um negócio para ficar de olho. Hoje, não vejo como um problema material. Mais para frente, pode ser. Vai depender da evolução desse saldo”, avalia o diretor da Fitch. /COLABOROU LUCAS AGRELA