No bojo dos retrocessos fiscais verificados em 2022, que têm potencial para produzir graves desequilíbrios macroeconômicos a médio prazo, a proposta de tirar programas sociais do teto de gastos vem à baila. A permissão dada por Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o pagamento do Bolsa Família (BF) via crédito extraordinário extra teto acirrou este debate sobre as rubricas a manter ou preservar na regra.
Na prática, diante da vigência de uma regra ao estilo do teto de gastos, quando uma política pública é posta fora do limite constitucional estabelecido, é aberto um espaço fiscal dentro do teto para contratação de outras despesas (muitas desconectadas de qualquer objetivo social, como as emendas de relator, cuja ilegalidade foi constatada pelo STF com pelo menos um ano de atraso). Em resumo, ao tirar despesas sociais do teto, criam-se as condições para a expansão de despesas não sociais e alguns privilégios dentro dele.
Uma segunda questão nociva aos objetivos da política social é que, ao retirá-la das travas das regras fiscais, se cria o incentivo permanente à captura política do programa. O tratamento prioritário que o Bolsa Família recebe dos políticos não está relacionado com a sua importância para a mitigação da pobreza (outras políticas públicas, como a educação básica, não têm a mesma atenção).
Os políticos querem tirar o BF do teto porque há uma expectativa de que a ampliação do programa produza elevações da probabilidade de reeleição. Prova disso foi a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Kamikaze aprovada em 2022. Enquanto o valor de R$ 600 foi tratado de forma intransigente pelos candidatos na eleição, fizeram-se completamente ausentes da discussão questões essenciais como o desenho do programa ou a fonte de financiamento e as portas de saída para que em 20 anos o BF não seja mais tão necessário como hoje.
Outro problema deste tipo de decisão é que se abre o precedente para que isso volte a acontecer no futuro. Nada garante que outro ministro interprete que outra rubrica de gastos seja fundamental para a garantia de direitos universais e permita a sua exclusão, ainda que parcial, do teto de gastos. Isso relega o processo político e, consequentemente, a discussão sobre prioridades, ao segundo plano.
Se o combate à pobreza e à fome é uma prioridade nacional, o foro adequado onde tais prioridades devem constar é o político e não o jurídico. Sob pena de não se ter a quem responsabilizar quando os custos econômicos e sociais da farra fiscal em curso aparecerem. l
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