BRASÍLIA – O perfil da empresa de bet Zé do Cash no Instagram postou um vídeo curto com uma paródia do funk “Cerol na Mão”, lançado pelo Bonde do Tigrão em 2001. “Quer ganhar, quer ganhar, o tigrão vai te pagar”, entoava o ator que representa o mascote da bet nas redes.
O histórico do dono da Zé do Cash, porém, não inspira confiança: José Moisés Deiab é um empresário de 71 anos e morador de Santana de Parnaíba (SP). Ele possui dois CPFs junto à Receita Federal, várias ações judiciais de cobrança de dívidas e um boletim de ocorrência por estelionato, registrado por um investidor que o acusa de aplicar um calote milionário.
Por meio de seu advogado, José Moisés Deiab disse ao Estadão ser um empresário “com muitos anos de atuação em mercados brutalmente disputados”, e que “é normal” ocorrerem conflitos. Sobre a questão dos dois CPFs, a defesa alega que o segundo documento foi feito por um estelionatário usando documentos roubados de Deiab. Já as cobranças de dívidas foram pagas ou arquivadas, segundo a defesa. Procurada, a Receita diz não comentar casos de empresas individuais.
Focada no “Tigrinho” e em outros jogos de cassino virtual, a bet de José Moisés Deiab opera atualmente com permissão do Ministério da Fazenda. Tem entre seus divulgadores o zagueiro Fabrício Bruno, do Flamengo, além de influenciadores das redes sociais. A reportagem não conseguiu contato com Fabrício Bruno.
A marca Zé do Cash pertence à empresa GGR7 Lazer, Pagamentos e Participações S.A, aberta em fevereiro de 2022 e sediada no Alphaville de Barueri (SP). Nos registros da Receita, José Moisés Deiab aparece como conselheiro de administração da empresa. Até novembro de 2023, ele figurava como diretor presidente.
Além da Zé do Cash, a GGR7 também recebeu permissão do Ministério da Fazenda para operar outras duas marcas: a Play7 Bet, focada em apostas esportivas; e a BankBet.
Em setembro passado, Deiab fechou um contrato com a empresa britânica OpenBet para viabilizar as operações de suas firmas. Além de fornecer soluções de informática para empresas de apostas, o acordo também envolve um empréstimo de US$ 2,3 milhões da OpenBet para a GGR7, de acordo com uma ata depositada na Junta Comercial de São Paulo (Jucesp). A transação é a primeira do tipo firmada pela OpenBet no Brasil. Foi notícia em vários sites especializados no mercado de apostas.
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Tombo de R$ 1,5 milhão em investidor
Um dos processos mais recentes de José Moisés Deiab envolve justamente a criação de uma empresa de apostas online. Em fevereiro de 2020, o empresário Alberto Luiz Burani assinou com Deiab um contrato de empréstimo (mútuo), no valor de R$ 1,5 milhão. Pelo contrato, o pagamento daria a Burani direito a 30% do controle de uma nova empresa de apostas esportivas a ser criada por Deiab, chamada “NEW.CO”. Só que a empresa nunca foi constituída, e Burani tenta reaver na Justiça os valores. Já Deiab alega que Burani deixou de efetuar “novos e maiores investimentos” compactuados, o que levou ao fracasso do negócio.
No processo, os advogados de Burani explicam que ele foi convencido a entrar na sociedade com José Moisés Deiab pelo advogado Paulo Fernando de Moura, que era amigo e frequentava a casa de Burani. Dos R$ 1,5 milhão, R$ 500 mil foram pagos a Deiab, e o R$ 1 milhão restante seria usado para colocar a empresa de pé. Como as bets ainda não estavam regulamentadas no Brasil, a operação funcionaria a partir de uma firma a ser constituída em Curaçau, uma ilha dos Países Baixos perto da costa da Venezuela, e que é sede de várias firmas de apostas, além de ser um paraíso fiscal.
“Após ter transferido à Play7, de José Moisés Deiab, à 3D Technology de Paulo Fernando e ao próprio José Moisés mais de R$ 2 milhões (em valores corrigidos), sem que nenhuma empresa fosse constituída ou devolvido o valor dos mútuos, o requerente Alberto e a ADD TEX perceberam que estavam sendo vítimas de um verdadeiro engodo”, diz trecho de uma ação movida pelos advogados de Alberto Luiz Burani.
“Além disso, os mútuos (empréstimos) realizados pela ADD TEX (a empresa de Burani) (...) de igual modo não foram honrados, tampouco poderiam ser convertidos em participação societária, já que nenhuma empresa foi criada, como acordado”, diz a ação. O processo inclui cópias dos contratos de mútuo.
Após o calote, os advogados de Burani fizeram buscas detalhadas sobre José Moisés Deiab, e descobriram que ele tinha dois CPFs. Segundo os advogados, os CPFs “foram estrategicamente utilizados” para captar o dinheiro por meio dos mútuos: o CPF informado por Deiab a Burani estava “limpo”, sem nenhuma pendência. No entanto, no outro CPF, cuja situação estava como “suspensa” na Receita Federal, os advogados encontraram “diversas distribuições de ações cíveis em seu desfavor” – ações de cobrança, principalmente. Os advogados também mostraram que a mulher de Deiab tambem possui dois números de CPF, estando um suspenso.
Hoje, o advogado Paulo Fernando, que apresentou Deiab a Burani, consta como conselheiro de administração da GGR7 nos registros da Receita. Em setembro passado, a 1ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu a Deiab um habeas corpus para trancar o inquérito da Polícia Civil de SP que apurava a possível prática de estelionato – o que não encerra a disputa com Burani.
Ao Estadão, José Moisés Deiab disse que o negócio não foi adiante por culpa de Burani, que não realizou todos os investimentos previstos para a constituição da empresa NEW.CO, “passando a cobrar o dinheiro investido como se fosse um empréstimo”. “Esta atitude provocou enormes prejuízos para Moisés. Ambas as partes estão brigando duramente, em juízo, onde Moisés tenta demonstrar o golpe que sofreu”, diz Deiab, por meio de seu advogado.
Dívidas de bancos, aluguéis e ações trabalhistas
Uma busca rápida pelo número de CPF suspenso de José Moisés Deiab mostra um histórico de problemas com credores e algumas cobranças de dívidas trabalhistas. Segundo a defesa de Deiab, os processos ou já foram arquivados, ou as dívidas já foram pagas. Do banco Itaú, por exemplo, há duas cobranças. A mais antiga é de em 2012, no valor de R$ 265 mil, e foi considerada prescrita em fevereiro de 2015. A outra, no valor de R$ 70 mil, foi assumida por companhia securitizadora, resultando na condenação de José Moisés Deiab ao pagamento de R$ 95,6 mil em 2018.
O HSBC também cobrou dele o valor de R$ 180 mil em 2012, e em abril de 2022 a ação foi considerada extinta depois que ele pagou a dívida. Há ainda um processo de cobrança de uma empresa de gesso, ajuizado em 2012, e que foi extinto em 2020 depois que Deiab pagou o débito.
Em fevereiro de 2023, um advogado de São Paulo (SP), Renato Mordjikian, ajuizou uma outra ação contra Deiab e a empresa Play7 Gaming Technology para cobrar alugueis devidos de uma sala comercial em Osasco, na zona metropolitana da capital paulista, alugada em 2018. Na ação, Mordjikian pede a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, ou seja, que os valores sejam cobrados da pessoa física de Deiab e dos outros sócios da Play7. Ele também menciona o fato do empresário ter dois CPFs. Em dezembro passado, o pedido de Mordjikian foi negado pela Justiça, e o caso arquivado.
Como mostrou o Estadão, a Zé do Cash é a bet cujos donos têm a maior dívida de impostos federais dentre todas as firmas que receberam permissão da Fazenda para atuar. Juntos, os donos e diretores de bets permitidas pela Fazenda e pelos Estados devem quase R$ 18 milhões em impostos federais.
Os débitos da Zé do Cash estão relacionados ao empresário Elder de Faria Braga, integrante do conselho de administração e sócio de José Moisés Deiab. Dizem respeito a uma empresa anterior dele, chamada Crisco Empreendimentos, que atuou no ramo de administração de marcas.
A Receita cobra R$ 10,5 milhões em Imposto de Renda da Pessoa (IRPJ) e Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), e Elder figura como corresponsável pela dívida. Elder contesta o débito na Justiça e conseguiu recentemente uma decisão de primeira instância contra a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), que cobra a dívida.
Permissão do Ministério da Fazenda ainda não é definitiva
No dia 1º de outubro, o influenciador Rafael Dutra postou um vídeo em sua conta no Instagram dizendo que a Zé do Cash, que ele divulga, estava “100% regulamentada”. “Traga sua banca pra Zé do Cash, link na bio” dizia o texto. A publicação tinha ainda o link para a postagem do Ministério da Fazenda. No mesmo dia, o próprio perfil da Zé do Cash fez uma postagem se dizendo “regulamentada” no Brasil. No perfil do Instagram, a empresa de se diz “autorizada” pelo Ministério da Fazenda.
Tecnicamente, porém, o que a Zé do Cash tem é uma permissão provisória, válida até o fim deste ano. A autorização definitiva, válida por cinco anos, só será concedida às casas de apostas que seguirem as regras do Ministério da Fazenda, a partir do dia 1º de janeiro de 2025. A “regularidade fiscal” e a “idoneidade” são requisitos exigidos pela lei que regulamentou as bets, aprovada pelo Congresso. A reportagem do Estadão questionou a Secretaria de Prêmios e Apostas sobre o caso da GGR7, mas a pasta disse que não comenta casos individuais.
A advogada Fernanda Magalhães, sócia do escritório de advocacia Kasznar Leonardos e especialista em Direito do marketing e entretenimento., diz que é provável que nem todas as bets atualmente permitidas consigam a autorização definitiva.
“Muitas delas, provavelmente, não terão. O que a gente vê dos comentários da própria secretaria (de Prêmios e Apostas) é que nem todas serão aprovadas”.
As exigências são severas, diz Fernanda, e demandarão das empresas uma preparação para atuar no mercado brasileiro. “Por exemplo: precisarão provar que já tem como fazer um atendimento, como um SAC, em português. Empresas que operavam sem nenhuma estrutura de atendimento, como era antes, hoje precisarão se estabelecer no Brasil. Tem que ter um CNPJ no Brasil, etc”, diz ela.
A permissão provisória foi dada às empresas que fizeram os pedidos dentro do prazo – ou seja, antes de 17 de setembro. Para obter a autorização definitiva, válida por cinco anos, as empresas precisam pagar uma taxa, chamada de outorga, no valor de R$ 30 milhões. Ao operar no Brasil, as empresas precisam pagar 18% de impostos, com os ministérios do Esporte e do Turismo recebendo as maiores fatias (4% cada).
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