BRASÍLIA – Em meio à explosão do mercado de apostas online no Brasil, uma proposta do Ministério da Fazenda para a criação de uma força-tarefa contra o vício nos jogos está há um ano na gaveta. No segundo semestre de 2023, a pasta sugeriu a criação de um grupo de trabalho interministerial para atuar na prevenção e no tratamento do vício em apostas esportivas – com alertas contundentes sobre a dependência patológica, a chamada ludopatia.
À época, o Congresso ainda discutia a regulamentação do setor no País, que seria aprovada meses depois. Um ano se passou e o grupo segue no papel, apesar dos reiterados alertas de profissionais da área da saúde, que vêm o vício alcançar brasileiros cada vez mais jovens.
Segundo o presidente do Instituto Jogo Legal, que representa o setor, Magnho José, o mercado de apostas brasileiro chegou ao estágio atual devido à falta de regulamentação no prazo inicialmente previsto. Na proposta do governo de Michel Temer, em 2018, o setor deveria ter sido regulado dentro de dois anos, com prazo prorrogável por mais dois.
Em meio ao vácuo de políticas interministeriais mais abrangentes e imediatas, já começam a surgir propostas no Congresso para limitar a atuação das bets e o alcance dos jogos online. Dentre elas está uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que iguala as apostas ao álcool e ao tabaco, impondo restrições legais à publicidade do setor, bem como um projeto de lei para limitar o valor das apostas por CPF (leia mais abaixo).
O Estadão teve acesso à minuta de decreto proposto pela equipe econômica no ano passado. No documento, a Fazenda afirma que o tema exige “atenção imediata do poder público” e que o transtorno do jogo patológico constitui “uma das maiores ameaças ao crescimento da indústria das apostas” – a qual já movimenta R$ 100 bilhões no País, segundo projeções.
A exposição de motivos do decreto, endereçada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e assinada pelo ministro Fernando Haddad, destaca a necessidade de se “endereçar, com urgência e vigor, a influência deletéria que a exploração do mercado de apostas esportivas pode ter sobre os apostadores” e afirma que “os esforços públicos demandam atuação coesa, firme e coordenada de vários órgãos e agentes”.
Nota técnica anexada ao decreto diz que os jogadores patológicos “podem gastar grandes quantias de dinheiro e tempo” e recorrer a “medidas desesperadas, como roubar ou vender bens”. Essa patologia, continua o documento, “absorve progressivamente as energias psíquicas e físicas do jogador até destruir tudo o que lhe é mais importante”.
Pela proposta, o grupo seria coordenado pela Fazenda e contaria com integrantes do Ministério da Saúde e da Advocacia Geral da União (AGU). O Ministério do Esporte chegou a ser convidado a integrar o GT, mas, segundo documentação anexada à minuta, não respondeu à solicitação da equipe econômica.
A determinação era para que o colegiado se reunisse, no mínimo, quinzenalmente, para elaborar a política de jogo responsável, com campanhas educativas e a formulação de exigências às empresas. Além de propor diretrizes de assistência a jogadores compulsivos e monitorar a efetividade das ações adotadas. O grupo teria 60 dias para produzir um relatório final e contaria com a contribuição de entidades da sociedade civil.
Leia mais
Procurada, a Fazenda afirmou que o grupo “está em processo de construção e deve ser publicado por meio de portaria interministerial”. Em nota, a pasta destaca a publicação, no fim de julho, de portaria com regras para evitar e punir a publicidade abusiva e exigir que as bets realizem ações de enfrentamento aos transtornos do vício, prevendo, inclusive, a suspensão de jogadores com “alto risco de dependência”.
Não há, porém, critérios específicos para essa classificação, a qual ficaria a cargo de cada empresa – “desde que atenda aos requisitos mínimos definidos na portaria”, frisa a Fazenda.
A equipe econômica também diz que “estão sendo discutidas medidas” com o Ministério da Saúde e que o governo “está desenhando” campanhas educativas voltadas aos apostadores, para que eles encarem as apostas “como lazer, e não como forma de ganhar dinheiro ou melhorar o status social”. Essas campanhas, segundo a pasta, serão iniciadas ainda neste ano.
Por fim, a Fazenda diz que haverá “cooperação relevante” com o Ministério do Esporte, “por meio de trabalho integrado permanente” e cita parcerias adicionais com a Justiça e Segurança Pública e com o Banco Central.
O Ministério da Saúde alega que tem expandido a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para aprimorar o atendimento a pessoas com problemas de saúde mental, incluindo jogo patológico. “Foram habilitados mais 117 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), totalizando 2.953 unidades em 2024″, diz a nota. A pasta também afirma que aumentou em 27% o orçamento da RAPS, o primeiro aumento desde 2016.
O Esporte não respondeu ao questionamento da reportagem, enquanto a AGU afirmou que a Fazenda se posicionaria pelo órgão.
PEC busca restringir publicidade de bets
No Congresso, o tema das apostas esportivas já começa a ser alvo de novos debates. Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de autoria do deputado Luiz Gastão (PSD-CE) iguala as apostas esportivas a bebida alcoólica, tabaco, agrotóxico e medicamento, e impõe restrições legais à propaganda comercial do setor, com a exigência de alerta aos malefícios.
O parlamentar diz que está colhendo assinaturas na Câmara para conseguir protocolar a PEC. “Estamos vendo uma infestação na sociedade do vício do jogo, que tem afetado o desempenho profissional e os relacionamentos familiares de várias pessoas”, diz Gastão. “As apostas esportivas passariam a seguir o mesmo princípio da bebida (alcoólica) e do cigarro na publicidade, pois acabam gerando tanto mal à saúde quanto esses outros itens”, afirma.
Gastão admite que o Congresso deveria ter dado mais atenção ao debate sobre as externalidades negativas das apostas esportivas, que tiveram o aval da Câmara e do Senado no ano passado. “Eu acho que faltou um critério maior em relação ao acesso, que ficou fácil”, diz. As críticas, no entanto, se estendem ao governo: “Há uma lentidão em tomar uma posição”.
O deputado também busca angariar apoio a um Projeto de Lei que restrinja o valor das apostas por CPF e preveja a proibição imediata do uso do cartão de crédito no pagamento dessas plataformas digitais.
Desde abril, uma portaria da Fazenda já determina essa proibição, mas as empresas só serão obrigadas a cumprir a regra a partir de janeiro de 2025. Como mostrou o Estadão, a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) também defende a vedação instantânea do uso do cartão devido ao efeito das bets no endividamento e na inadimplência das famílias.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.