Seja no campo de futebol, na camisa dos jogadores, nas propagandas de rádio e TV ou nas redes sociais, as plataformas de apostas online, conhecidas como bets, se tornaram onipresentes. Desde que foram legalizadas no País em 2018, no governo de Michel Temer, elas avançaram sob o orçamento dos brasileiros e viraram preocupação para governo e empresas. A hipótese é de que o gasto com as apostas esteja drenando parte dos recursos que iriam para compra de bens e serviços, além de representar um risco de aumento de inadimplência no futuro.
No ano passado, mais de 300 empresas de bets movimentaram entre R$ 60 bilhões e R$100 bilhões em apostas no Brasil, quase 1% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo projeções da Strategy& Brasil, consultoria estratégica da PwC. O setor das bets, portanto, gira mais capital por ano do que grandes empresas, como Santander (R$ 74 bilhões), Assaí (R$ 72,8 bilhões), Gerdau (R$ 68,9 bilhões) e Magazine Luiza (R$ 63,1 bilhões).
O Estado procurou empresas do setor, como Bet7K, Bet Nacional e Betano, mas não teve retorno. Segundo o presidente do Instituto Jogo Legal, que representa o setor, Magnho José, o mercado de apostas brasileiro chegou ao estágio atual devido à falta de regulamentação no prazo inicialmente previsto. Na proposta do governo de Michel Temer, o setor deveria ter sido regulado dentro de dois anos, com prazo prorrogável por mais dois. Mas isso só ocorreu agora.
Do total movimentado em 2023, entre R$ 40 bilhões e R$ 50 bilhões deixaram de ser gastos com bens e serviços (ou investidos em alguma aplicação), diz o diretor da Strategy& Brasil, Mauro Toledo. Em casos mais drásticos, os gastos com apostas levaram ao endividamento dos jogadores.
Estudo da empresa de pesquisas Hibou, com 2.839 pessoas em agosto deste ano, mostra que a despesa mensal do brasileiro com apostas online está entre R$ 100 e R$ 500. Em um ano, o gasto com apostas fica entre R$ 1,2 mil e R$ 5 mil. Em jogos online, como o “jogo do tigrinho” (Fortune Tiger), 78% dos entrevistados afirmaram não saber quanto já gastaram em apostas.
Resultado disso, é o aumento da parcela dos gastos com apostas na renda familiar de 0,2% em 2018 para 0,7% em 2023, segundo Toledo, da Strategy& Brasil. Embora a fração pareça ser pouco relevante, essa categoria passa a representar 38% de todo o valor gasto com lazer e cultura (ante 10% em 2018) e 4,4% dos gastos com alimentação (ante 1,5% em 2018). Para este ano, a estimativa é de que o desembolso responda por quase 5% do valor gasto com alimentação.
Hoje o Brasil já é o terceiro maior mercado de apostas online do mundo. E não deve parar por ai: para o ano que vem, a consultoria projeta que o faturamento com o jogo online alcance R$130 bilhões no País. As estimativas são feitas com base em vários dados de diferentes fontes, como as remessas ao exterior de recursos das bets registradas no Banco Central, o número de apostadores, o valor médio, a frequência das apostas, assim como estimativas de quanto as empresas de jogos esportivos online desembolsaram com marketing, por exemplo.
As bets ganharam força a partir de 2018, quando o então presidente Michel Temer sancionou a Lei 13.756. Em 2020, antes mesmo da regulamentação das casas de apostas (vários pontos ainda precisam ser definidos), o País já contava com 51 marcas atuando nesse segmento, com movimentação de R$ 10 bilhões. Hoje as estimativas do setor dão conta de que existem, ao menos, 2 mil empresas atuando no mercado.
A cada rodada, o gasto do brasileiro com apostas online fica entre R$ 10 e R$ 50, segundo estudo da empresa de pesquisas Hibou. O gasto mensal fica entre R$ 100 e R$ 500 (14% disseram gastar mais de R$ 500). Em um ano, alcança entre R$ 1,2 mil e R$ 5 mil.
Essa rápida expansão dos jogos pode explicar alguns resultados aquém do esperado no comércio. Hoje, apesar do desemprego em baixa, a renda em alta e a inflação controlada, as condições macroeconômicas favoráveis não têm se traduzindo em avanço do consumo na intensidade projetada pelos empresários do comércio.
Isso levanta a suspeita de que o dinheiro dos consumidores tem ido para as apostas online. “Estamos escutando cada vez mais dos varejistas que eles não estão sentindo o impacto esperado de aumento do consumo para itens de vestuário e alimentos”, conta Luciana Medeiros, sócia e líder de varejo e consumo da PwC Brasil.
Bets afetam a renda?
Uma resposta para essas suspeitas vem de uma pesquisa online feita pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) e pela AGP, com 1.337 brasileiros. Segundo a enquete, 38% dos entrevistados disseram ser apostadores online, 51% afirmaram fazer o jogo ao menos uma vez na semana e quase metade (49%) aumentou o volume de apostas em 2024. Entre os apostadores, 63% tiveram, ao menos uma vez, a sua renda principal afetada por causa do gasto com as bets, aponta a enquete.
O segmento que mais perdeu vendas para as apostas esportivas online foi o de acessórios, que incluem calçados, bijuterias, bolsas, joias, por exemplo. De acordo com a pesquisa, 24% dos entrevistados informaram que deixaram de comprar acessórios para apostar, seguido por artigos de vestuário (23%), itens de supermercado (19%), viagens (19%), alimentação fora de casa (15%), produtos de higiene e beleza (14%), cuidados com a saúde e medicações (11%) e contas de água, luz e gás (11%). “São resultados relevantes (para a economia)”, diz o presidente da SBVC, Eduardo Terra.
Pelo levantamento da PwC, o maior impacto das bets no orçamento familiar ocorre nos gastos com esportes, lazer e cultura e depois pega outras despesas discricionárias, cabeleireiro, vestuário. O terceiro item mais afetado é alimentação, com substituição de marcas. O menor impacto das bets ocorre nas despesas com moradia, educação e saúde, porque essas despesas são obrigatórias.
Leia mais
Um estudo do banco Santander também considerou os novos hábitos de consumo, entre os quais os jogos online, como um dos fatores do recuo do consumo em geral no orçamento das famílias.
De acordo com o levantamento do banco, as vendas no varejo ampliado, que incluem veículos e materiais de construção, representaram 57% da renda das famílias em 2023, abaixo do pico de 63% em 2021, porém próximo da média de 56% registrada entre 2013 e 2023.
Entre as razões apontadas pelo Santander para o fraco desempenho das vendas no varejo dos dois últimos anos, apesar do forte crescimento do rendimento, estão a reversão do comportamento do consumidor que houve na pandemia, os estímulos ao crédito, as compras em sites internacionais (cross-border), criptomoedas e os novos hábitos de consumo, como os jogos online.
Jogo bicho, loteria esportiva, Mega-Sena, jogos de azar
Enquanto a loteria tradicional movimentou no ano passado R$ 23,4 bilhões, segundo a PwC, as apostas esportivas online giraram entre R$ 60 e R$100 bilhões. A cifra das bets também supera o que foi comercializado nos sites internacionais, cerca R$ 50 bilhões.
É exatamente esse grande montante dos jogos online que faz a diferença. “As bets estão fazendo todo esse barulho por causa do volume de recursos que movimentam em relação a outros tipos de apostas que sempre existiram”, afirma Terra, do SBVC.
Além de as bets girarem cifras bem maiores do que as apostas tradicionais, outro ponto que põe os holofotes sobre o setor é o fato de se tratar de um fenômeno novo, que tem um efeito exponencial, porque as apostas são online, por meio de smartphones, e podem ser feitas num ritmo infinitamente maior do que nos jogos tradicionais. “Isso faz com que as apostas online ocupem um espaço cada vez maior da renda, principalmente de algumas classes sociais, que têm o orçamento apertado”, observa o presidente da SBVC.
O perfil do apostadores é predominante formado pela classe de menor renda. Mais da metade dos adeptos das bets (54%) são da classe C, segundo pesquisa da SBVC. A maioria é formada por homens (58%), com idades que variam entre 25 e 44 anos (51%) e residentes nas regiões Sudeste (50%) e Nordeste (20%).
Reação do varejo
O avanço das apostas online virou foco discussão das entidades do varejo seja pelo problema social, de saúde pública, seja pela perda do volume de negócios.
O presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV), Jorge Gonçalves Filho, que representa os varejistas, admite a preocupação com os efeitos das bets pelo fato de movimentarem cifras “gigantescas”, que não estão “acomodadas” na economia, caso da loteria tradicional.
“A nossa preocupação não é exclusivamente com o varejo, mas sim com tudo o que cerca a questão de desvio de finalidade do rendimento da família, é uma questão de saúde pública”, afirma Gonçalves Filho. Ele conta que os jogos online já afetam vários colaboradores das empresas do IDV, com efeitos negativos no trabalho e na vida particular dos funcionários.
O executivo cita a Inglaterra, onde os jogos online têm forte presença, como as bets sendo responsáveis pelo vício do jogo e os adeptos necessitando de tratamento psicológico e clínico. “Essa é a nossa primeira preocupação, porque isso afeta o consumo, não só o varejo, mas as demandas como um todo, como os serviços. Quem está complicado financeiramente com bet, provavelmente, não vai ao dentista”, exemplifica.
O IDV não tem, até o momento, dados consolidados sobre qual seria a perda de vendas das empresas associadas por conta das bets. “Por enquanto, temos highlights”, diz Gonçalves.
A intenção da entidade é realizar, ainda neste ano, um estudo aprofundado para avaliar o real impacto dos jogos online no faturamento do varejo, assim como foi feito no caso dos sites internacionais.
Esse será o ponto de partida para o varejo pleitear um tratamento diferenciado na tributação das bets, como já ocorre com cigarros e bebidas. Segundo Gonçalves Filho, há espaço para uma tributação maior das bets, porque elas podem causar problemas de saúde e problemas financeiros. Atualmente, cigarros e bebidas são taxados em 55% na esfera federal, enquanto o imposto sobre apostas online é de 12%.
Já a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) decidiu alertar os supermercados que adotem uma política rigorosa na seleção de agências de marketing e influenciadores, escolhendo aqueles que não tenham relação com os jogos de apostas online, as bets.
“Vamos escolher agências e influencers que prezam pela responsabilidade social e pelo impacto positivo na vida dos consumidores e que não incentivem, direta ou indiretamente, práticas prejudiciais como os jogos de apostas”, afirmou a entidade em posicionamento divulgado na quinta-feira, 29. Procurados pelo Estadão para se manifestar, os representantes dos influenciadores e das agências não responderam aos pedidos de entrevistas.
Marcio Milan, vice-presidente da Abras, disse que a entidade precisava entrar nessa discussão das bets. Ele frisa que se trata de uma recomendação, destacando que as empresas estão livres para se posicionar a respeito da questão. Ele resume o sentimento: “Estamos sentindo que as pessoas vão se endividar e (isso) vai acabar resultando em problemas sociais”.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.