RIO – Alvo de críticas por causa dos juros baixos, do sigilo e dos critérios de seleção de projetos, os empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a exportação de serviços de empreiteiras brasileiras levaram a questionamentos sobre o sistema de financiamento às exportações em si, mas a política pública é essencial para o comércio exterior, dizem especialistas. Diferentemente das matérias-primas, a venda de produtos industrializados e de serviços, muitas vezes, depende de crédito. O desafio é aperfeiçoar a política, evitando problemas como os atrasos nos pagamentos das dívidas de Venezuela, Cuba e Moçambique.
Nesta terça-feira, 24, o BNDES negou que haja demanda para financiar “serviços de infraestrutura” no exterior, um dia depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defender o financiamento, pelo Brasil, da construção de um gasoduto para transportar gás natural produzido no campo de Vaca Muerta, localizado na Província de Neuquén, a oeste da região da Patagônia, até o Sul do País.
Em visita oficial à Argentina, Lula afirmou também que o “BNDES vai voltar a financiar as relações comerciais do Brasil e vai voltar a financiar projetos de engenharia para ajudar empresas brasileiras no exterior”.
As declarações do presidente devolveram ao centro das atenções algumas das operações mais polêmicas do banco de fomento nos governos anteriores do PT, como o empréstimo para o governo de Cuba contratar a construtora Odebrecht como responsável por tocar as obras do Porto de Mariel, localizado na ilha caribenha.
Presença constante nos escândalos de corrupção envolvendo empreiteiras e o governo, muitos revelados na Operação Lava Jato, o financiamento às obras no exterior em países da América Latina e da África foi extinto a partir das gestões do banco no governo Michel Temer (MDB) em diante, desde 2016. As operações foram também alvo de críticas do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que falava em “caixa preta”.
Após os escândalos em alguns dos projetos, o BNDES freou o crédito para o comércio exterior como um todo. Os desembolsos do BNDES Exim, linha para financiar as exportações, somaram R$ 2,567 bilhões em 2021, queda nominal (sem descontar a inflação), de 56,7% ante 2020. Uma série estatística mais longa, recortada apenas com a modalidade Pós-Embarque do BNDES Exim, mostra que, em 2021, os desembolsos somaram US$ 423,7 milhões, queda nominal de 45,9% ante 2020. Entre 2011 e 2014, os valores anuais oscilaram entre US$ 2 bilhões e US$ 2,7 bilhões.
Apesar da freada, o banco de fomento alcançou, no ano passado, a marca de US$ 100 bilhões em desembolsos para o comércio exterior, no acumulado de três décadas. Os empréstimos para as obras chamaram a atenção, mas respondem por pouco mais de 10% desse valor. Dos US$ 100 bilhões emprestados, US$ 10,5 bilhões financiaram 86 obras, em 15 países. Em torno de US$ 1 bilhão está registrado como calote de Venezuela, Cuba e Moçambique. O BNDES recebeu de volta US$ 12,8 bilhões, com juros e correção, e já incluindo as indenizações por calotes. O banco ainda tem US$ 946 milhões a receber.
A maior parte do crédito total de US$ 100 bilhões financiou exportações de manufaturados para os vizinhos da América Latina e para os Estados Unidos, mercados onde a indústria brasileira tem mais competitividade. O destaque é a Embraer, que recebeu em torno de US$ 25 bilhões em empréstimos – a fabricante de aeronaves é a segunda maior cliente histórica do banco, atrás apenas da Petrobras. O BNDES já financiou a compra de 1.275 aviões pelos clientes da empresa. Sem isso, a Embraer não teria como rivalizar com as gigantes do setor, pois faz parte do jogo global as empresas oferecerem o financiamento ao vender os aviões e, quando a venda é para o exterior, com apoio da agência de financiamento dos governos.
“Para alguns tipos de manufaturados, primeiro se vende o financiamento, depois o produto”, afirmou o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto Castro, relatando que a escassez de crédito nos últimos anos tem criado dificuldades para as exportações de algumas indústrias, como no caso dos fabricantes de máquinas e equipamentos, que estão “perdendo mercado” lá fora.
Segundo Castro, a retomada do sistema de financiamento às exportações é fundamental para as vendas de produtos industrializados. Com a perda de competitividade da indústria nacional, o Brasil se consolidou como exportador de matérias-primas nas duas últimas décadas. A AEB projeta que os produtos manufaturados responderão por 28% das exportações previstas para este ano, a menor participação desde 2000, quando era de 59%. Embora o aumento da competitividade da indústria dependa de reformas estruturais, como a reorganização de todo o sistema tributário, a melhora da infraestrutura logística e a estabilização do câmbio e dos juros, no curto prazo, a disponibilidade de crédito ajudaria, disse Castro.
Histórico
No Brasil, historicamente, o sistema de crédito para o comércio começou com o Banco do Brasil (BB) como agente principal. O desenho atual data do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), na década de 1990, quando o BNDES passou a atuar também. Atualmente, os dois bancos públicos dividem os trabalhos. O BB é agente financeiro do Programa de Financiamento às Exportações (Proex), que tem recursos do Tesouro Nacional e acaba atendendo empresas de menor porte. O BNDES fica com as empresas de maior porte e com as operações mais complexas.
Para o economista e consultor Eduardo Augusto Guimarães, ex-secretário do Tesouro Nacional nos governos Fernando Henrique, que trabalhou em estudos para a Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex) e para a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o sistema brasileiro de financiamento às exportações é “bem razoável”, embora precise de aperfeiçoamentos. Para Guimarães, houve decisões equivocadas no financiamento de obras, mas “jogar a culpa no BNDES é um absurdo”.
Quando revelou detalhes das condições de um empréstimo para uma obra tocada pela Andrade Gutierrez na República Dominicana, em maio de 2015, o Estadão ouviu profissionais do mercado financeiro que criticaram o fato de a taxa de juros ser inferior àquela que a República Dominicana conseguia no mercado e menor do que a oferecida no próprio Brasil.
Segundo Guimarães, porém, as taxas do BNDES estavam nos parâmetros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, entidade que reúne países desenvolvidos), como mostram estudos comparativos. As condições oferecidas pelo Brasil seriam até mais restritivas do que as de outros países, como a China, pois o sistema brasileiro não financia investimentos em insumos locais, como fazem outros países.
Agora, ao retomar a política de crédito às exportações em mais um governo petista, como sinalizado na segunda-feira, 23, pelo presidente Lula, seria preciso evitar cometer os erros do passado, disse Guimarães. “O que esse governo aprendeu com os erros e a experiência anterior? Na área de economia, não está parecendo ter aprendido muito, mas vamos dar um crédito”, afirmou o economista.
Para Guimarães, os aperfeiçoamentos necessários passam por mudanças nas regras do FGE, o fundo que garante as operações com outros países. No caso específico de eventual empréstimo para o gasoduto na Argentina, seria importante cobrar contragarantias mais firmes do governo argentino.
Críticas
Para Gustavo Montezano, ex-presidente que comandou o BNDES na maior parte do governo Bolsonaro, a má governança do sistema de financiamento ao comércio exterior durante os governos anteriores do PT estaria por trás dos problemas. O diagnóstico foi feito pelo executivo em sua primeira entrevista ao Estadão, em setembro de 2019, quando comentou também informações levantadas por sua gestão sobre os financiamentos do BNDES à construtora Odebrecht.
Na entrevista, o ex-presidente reconheceu a importância do financiamento à exportação, mas criticou a governança do sistema. Para o executivo, houve rebaixamento da nota de risco de crédito sem critérios técnicos. Segundo Montezano, a edição da uma resolução da Câmara de Comércio Exterior (Camex), órgão interministerial que define políticas comerciais, em 2003, primeiro ano do primeiro governo Lula, foi determinante para impulsionar essas operações.
A resolução reduziu o custo de crédito para Argentina, Equador, Venezuela e República Dominicana, porque baixou a classificação de risco desses países. Além disso, no caso de Cuba, houve “uma conjunção de excepcionalidades”. “Se você faz a análise de risco de Cuba, Venezuela e Equador, e eles pagam o mesmo preço do Chile ou da Colômbia, é esquisito”, afirmou Montezano, na entrevista de 2019.
Uma análise nas atas de reuniões do Conselho de Ministros da Camex nos governos anteriores do PT mostra que os empréstimos para Cuba tiveram aprovadas, mais de uma vez, condições excepcionais, melhores inclusive do que as regras previstas para esse tipo de operação. No caso das obras do Porto de Mariel, por exemplo, a reunião de 15 de dezembro de 2009 da Camex aprovou “excepcionalidades” para uma parcela de US$ 127,9 milhões, entre elas, o prazo total de 25 anos, quando o prazo “regulamentar” era de 12 anos.
Outra parcela do financiamento, de US$ 176,5 milhões, além do prazo maior do que o regulamentar, recebeu uma excepcionalidade nas garantias, aprovada em 26 de maio de 2010. Foram aceitos como garantia “fluxos internos de recebíveis gerados pela indústria de tabaco”, depositados em conta “aberta em banco cubano”. O usual, conforme a própria ata da reunião da Camex, seria exigir “fluxos externos de recebíveis”. Recebíveis são títulos ou contratos que representam um pagamento a receber no futuro, ou seja, a garantia do empréstimo foi a receita da venda de charutos. Segundo as regras, a garantia poderia ser a receita com exportações de charutos, mas a Camex aceitou as vendas internas no mercado cubano.
Para Montezano, as decisões sobre o nível das taxas de juros e sobre a avaliação do risco deveria ser “técnica”. “Quem tem melhor risco deve pagar menos, quem tem maior risco de pagar deve pagar mais (em juros e garantias). Se fizermos uma análise ideológica desses países, tem uma certa coincidência também. Não estou dizendo que foi proposital, mas chama atenção não ter outros países que poderiam eventualmente ter demanda por serviços de engenharia e não foram escolhidos pelas construtoras”, afirmou o ex-presidente, ainda na entrevista de 2019.
Na visão de Montezano, a atuação do banco no financiamento às obras das empreiteiras no exterior estava intimamente ligada à política econômica dos governos do PT. Com “dinheiro subsidiado do Tesouro”, de um lado, e o seguro do FGE, o fundo federal que garante as operações, a proteger o BNDES de prejuízos financeiros e econômicos, de outro lado, o banco se tornou uma “máquina de desembolsar”. “Quando você vai construindo toda a teia, será que era isso mesmo que a gente deveria ter feito como País?”, questionou.
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