As fabricantes de autopeças tiveram hoje uma vitória contra três montadoras de veículos brasileiras no âmbito da propriedade intelectual. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) determinou há pouco por unanimidade que a Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça reabra a investigação sobre um suposto abuso de poder econômico de montadoras por meio de abuso de direitos de proteção de propriedade industrial no setor de autopeças. A SDE, que optou pelo arquivamento do caso, concluiu na primeira análise que o tema não estaria no âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). A grande discussão do processo é a possibilidade de produção de peças para reposição em carros ser feita exclusivamente pelas montadoras ou se também pode ser feita por empresas de autopeças.
A acusação de monopólio foi feita pela Associação Nacional dos Fabricantes de Autopeças (Anfape), que reúne 28 empresas do setor, contra as montadoras Volkswagen, Fiat e Ford. O relator do processo no Cade, conselheiro Carlos Ragazzo, no entanto, num pronunciamento de mais de duas horas, destacou que vários mercados que têm proteção intelectual como premissa de sua atividade têm de começar a ser investigados pelo Cade. "Tem que ter intervenção, sim. Ninguém aqui vai ter medo de intervir porque tem propriedade intelectual.Esse argumento não só não me convence como me estimula", afirmou. "É mais do que chegado o momento de esses casos chegarem aqui", acrescentou.
Ragazzo salientou que a SDE não levou em consideração uma série de pontos relacionados ao setor. Uma das críticas se deu em relação ao mercado relevante de autopeças indicado pela secretaria. Por exemplo: um consumidor que teve a lanterna de seu carro danificada e quer substituir terá de procurar outra lanterna específica para o modelo do veículo, e não de outra marca ou modelo ou mesmo outra peça, como um para-choque. "Cada tipo de peça de cada tipo de veículo constitui um mercado relevante. A segmentação é importante", salientou. A SDE englobou em sua análise todo o setor de autopeças como um mercado só.
O relator argumentou que os custos das montadoras com design das peças costumam ser baixos relativamente ao valor total do produto e geralmente são recuperados no momento da venda dos veículos. "Mesmo com abertura do mercado, as montadoras podem ter lucro significante. Além disso, por que outras montadoras não têm se valido dessa prática de exclusividade?", questionou. Para ele, portanto, as justificativas das empresas não são válidas. "O desenho importa no mercado primário, na aquisição do produto, e não no mercado de substituição de peças."
O conselheiro disse também que em relação à qualidade, um dos pontos colocados como diferencial da fabricação das peças originais, as montadoras nunca realizaram tantas chamadas para substituição de peças originais como nos últimos anos, os chamados recalls. "Só este ano, foram feitos mais de 1 milhão de recalls. Então qualidade e segurança são itens com os quais as montadoras também têm de lidar", sentenciou. O representante do Ministério Público no Cade, Augusto Aras, também pronunciou a favor do segmento de autopeças.
O conselheiro Vinícius Carvalho fez uma comparação ilustrativa: disse que o consumidor não costuma averiguar o preço de botões ao comprar um terno, mesmo sabendo que a perda desse item pode ocorrer, ocasionando a necessidade de um botão substituto. "Assim ocorre também com o mercado de veículos", disse. "A análise precisa ser feita com um pouco mais de cuidado pela SDE", continuou.
O conselheiro Ricardo Ruiz comentou sobre discussões na União Europeia sobre "más patentes" - patentes que trariam mais prejuízo do que benefício à sociedade e à concorrência industrial. "Seria pertinente o caso se tornar um processo administrativo." O Conselheiro Olavo Chinaglia apresentou um ponto de reflexão sobre indícios de infração à ordem econômica, como a alternativa de se fazer uma licença compulsória. Ele mesmo lembrou, no entanto, que essa seria uma hipótese a ser analisada com mais detalhes após a conclusão do processo administrativo pela SDE. O presidente interino do Cade, Fernando Furlan, enfatizou a necessidade de um meio termo em casos como este: o embate entre a produção do conhecimento, que precisa ser estimulada, e o bem-estar do consumidor, que precisa ser respeitado.
Prejuízos
Segundo a advogada da Anfape, Neide Malard, as montadoras utilizam uma conduta sutil que repercute em quatro mercados: peças de reposição, revendedores e varejistas, oficinas e seguro de veículos. "Isso traz prejuízos imensuráveis aos consumidores, pois é uma tentativa de monopolização do mercado de reposição", argumentou, acrescentando que se trata apenas de 12 a 15 peças de veículos de um total de 3 mil a 4 mil, que seriam chamadas peças externas ou de colisão.
Neide salientou ainda que as três montadoras contra as quais a Associação se pronunciou intimidam os fabricantes dessas peças e os excluem do mercado. "Estranhamente cada uma adota uma medida diferente (para proibir que outras empresas fabriquem peças) desde 2003. Com isso, os mercados já estão totalmente monopolizados", disse, citando como exemplos o capô e para-choque do modelo Fiesta e o farol do Ecoesport, ambos modelos da Ford.
Efeitos nefastos
A advogada da Anfap enfatizou que as empresas alegam investimentos em design para manterem-se como as únicas fabricantes dos produtos. "Isso é descabível: o investimento é recuperado no mercado de vendas, e não de reposição."Segundo ela, as estratégias adotadas pelas montadoras são anticoncorrenciais e geram o risco de eliminar 2 mil empresas desse mercado de peças de colisão. "Há efeitos nefastos para a concorrência e é importante que não se chegue a conclusões ingênuas como chegou a SDE", solicitou.
Por fim, Neide disse ainda que a aprovação pela manutenção da atitude pelo Cade, criaria um "círculo do mal". Isso implicaria, de acordo com ela, a busca por produtos no mercado negro, criminoso, o que representaria aumento de furtos de automóveis e consequente aumento do valor dos prêmios de seguros aos consumidores. "Espera-se que o Cade coloque um basta nessa tentativa de monopólio", afirmou.
O advogado da Ford, Ricardo Inglez de Souza, salientou que a prática das montadoras é a mesma da dos estúdios em relação a filmes e a de laboratórios farmacêuticos. Ele também defendeu que os mercados primários e secundários são dependentes no caso do setor automotivo e separá-los seria fazer uma "interpretação simplista" do caso. Souza acrescentou que a Ford não quis eliminar 2 mil empresas do mercado, mas apenas a parte das empresas que está fora da lei ao falsificar produtos.
O advogado da Fiat, Lauro Celidônio Gomes dos Reis, disse ser forçoso reconhecer que não há indícios contra a ordem econômica por parte das montadoras. "Há evidente falta de justa causa para abertura de processo e o direito de propriedade intelectual existe para assegurar privilégios", disse. Para ele, o tema não se classifica como uma das atividades de competência do Cade. "O que se discute aqui não é abuso de direito das montadoras", argumentou.
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