Mesmo com o desemprego em baixa e renda em alta, mais brasileiros não estão conseguindo pagar as contas em dia. Em outubro, pelo segundo mês seguido, o número de inadimplentes cresceu. Havia no País 73,1 milhões de pessoas que não quitaram seus compromissos. Essa é a segunda maior marca de inadimplentes da série histórica iniciada em 2016. Só perde para o pico registrado em abril deste ano, que atingiu 73,4 milhões, apontam dados da Serasa, empresa especializada em informações financeiras, obtidos com exclusividade pelo Estadão.
O aumento da taxa básica de juros a partir de setembro deste ano, a escalada da inflação de alimentos, puxada pela carne bovina nos últimos meses, e o redirecionamento do consumo das famílias de produtos para serviços (entre eles os jogos eletrônicos, as bets) são fatores que têm corroído o orçamento das famílias e dificultado o pagamento dos débitos no prazo, segundo economistas.
“Independente do indicador utilizado, sejam dívidas em atraso, seja a capacidade de pagamento, houve uma tendência de alta da inadimplência no curto prazo”, afirma o economista da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Fabio Bentes.
A piora do calote, por exemplo, diz ele, aparece em vários indicadores da CNC. Em fevereiro deste ano, 28,1% das famílias estavam com contas em atraso e esse índice subiu para 29,3% em outubro. Também a fatia das famílias que não conseguirão pagar as dívidas vencidas subiu no curto prazo: era 11,9% em julho deste ano e aumentou para 12,6% no mês passado.
Além disso, o porcentual de famílias com dívidas pendentes há mais de 90 dias avançou em outubro ante setembro e atingiu mais da metade (50,4%) do total de endividados. Foi o maior resultado desde fevereiro de 2018, aponta a CNC.
Cartão parcelado é vilão
Dados do Banco Central (BC) reforçam a virada a partir do segundo semestre deste ano da inadimplência dos créditos com recursos livres e vencidos acima de 90 dias. Em junho, esse indicador de inadimplência estava era 5,48% dos créditos a receber e encerrou setembro – último dado disponível – em 5,62%.
O vilão do calote foi o cartão de crédito parcelado, cuja inadimplência acima de 90 dias atingiu 11,89% em setembro, segundo dados do BC. É a maior taxa desde o início da série em março de 2011. “As famílias estão penduradas no crédito mais fácil, no cartão parcelado, onde o critério (de concessão) é frouxo”, observa o economista.
Luiz Rabi, economista da Serasa, compara a situação atual da inadimplência a um paciente internado numa Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “É um caso grave, preocupante, mas administrável”, avalia.
Em quase três anos, o número de inadimplentes no País aumentou cerca 11 milhões, o equivalente à população da cidade de São Paulo. O nível atual de 73,1 milhões de inadimplentes é elevado, mas estável. “O elevador subiu para 20º andar e lá ficou”, compara.
Essa estabilidade em níveis elevados é resultado, segundo o economista, de duas forças agindo em sentidos opostos. Enquanto o desemprego baixo e a renda em recuperação puxam a inadimplência para baixo, a alta dos juros e da inflação empurram o calote para cima.
Com a entrada do pagamento do 13º salário e as campanhas de renegociação de dívidas, a perspectiva é de que ocorra algum recuo da inadimplência em novembro e dezembro. Por isso, as vendas por ocasião da Black Friday, marcada para a última sexta-feira de novembro, 29, e do Natal não devem ser afetadas pelo calote.
Luz amarela
A grande incógnita, no entanto, é o que deve acontecer com a inadimplência no ano que vem. Para Bentes, o amortecedor da crise orçamentária das famílias, isto é, o nível de emprego, não tem mais para onde evoluir.
“Estamos imaginando uma desaceleração para economia para 2025 e, provavelmente, o desemprego vai subir”, diz Rabi. Ele acrescenta que não se sabe ao certo quanto tempo levará para inflação começar a recuar, apesar da certeza de que o juro continuará aumentando.
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Além disso, frisa que a conjuntura depende do impacto do pacote fiscal que está sendo costurado pelo governo. “Se for um pacote fiscal fraco, o dólar continuará subindo, o juro e a inflação também. Daí, pode-se começar a falar em recessão, não apenas em desaceleração da economia, com agravamento mais sério da inadimplência em 2025.”
Bentes pondera que a situação atual do calote não se trata de um caso extremo. “Não estamos caminhando a passos largos para o abismo.” Ele observa, no entanto, que é uma situação menos confortável e que soou um sinal de alerta, uma luz amarela.
Existe uma questão conjuntural que afeta a inadimplência por conta de fatores como taxa de juros, inflação, desemprego, renda e câmbio. Mas há também, segundo Bentes, mudanças estruturais nas despesas das famílias, com aumento da participação dos serviços nos gastos.
Em 2012, por exemplo, os serviços respondiam por cerca de um terço do orçamento familiar, de acordo com dados do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atualmente essa fatia subiu para 48% e quase empata com gastos com produtos (52%).
Isso explica, segundo Bentes, porque o comércio não está conseguindo se sair tão bem quanto poderia num ano no qual a taxa de desemprego, de 6,4% no trimestre encerrado em setembro é a menor da série histórica do IBGE, iniciada em 2012, e a massa de rendimentos tem alta real (descontada a inflação) de 7%.
Em relação às bets, o economista diz que é difícil calcular, com números, o efeito nas vendas e na inadimplência. “Mas eu sustento que as casas de apostas estão roubando parte da capacidade de consumo de bens da população.”
Renegociação de dívidas
Um dado que chama atenção na radiografia da inadimplência de outubro feita pela Serasa é que em sete unidades da federação a fatia de inadimplentes respondeu por mais da metade da população adulta. Esse resultado supera a média do País, que é de 44%.
Segundo Thiago Ramos, coordenador da Serasa, essa marca quase dobrou em um ano, um sinal, segundo ele, de agravamento da inadimplência. Em outubro de 2023, apenas quatro Estados tinham mais da metade da população adulta inadimplente.
Quem liderou o ranking de outubro deste ano foi o Amapá, com 60,8% da população adulta inadimplente, seguido pelo Distrito Federal (57,8%), Rio de Janeiro (54,6%), Amazonas (53,3%), Mato Grosso do Sul (51,5%), Mato Grosso (50,4%) e Roraima (50,06%). “54,6% da população adulta do Rio de Janeiro inadimplente é muita gente, é um mercado consumidor muito grande”, diz Ramos.
Exatamente para trazer parte desses consumidores de volta às compras que, em 28 de outubro, começou o Feirão Limpa Nome da Serasa. O evento vai até o dia 29 de novembro e reúne mais de mil empresas entre varejistas, bancos, financeiras, fintechs e prestadores de serviços, como energia elétrica, água e gás.
Neste ano o feirão terá três frentes. As dívidas com pagamentos atrasados poderão ser negociadas online por meio de aplicativos instalados no smartphone ou pelo site da Serasa, acessado pelo computador.
Presencialmente, mas com o uso da internet, o feirão está nas mais de 7 mil agências dos Correios espalhadas pelo País. O objetivo é que os funcionários dos Correios ajudem gratuitamente na negociação as pessoas que não tenham acesso à internet ou não saibam manusear o celular.
Também haverá um evento presencial em São Paulo, marcado para ocorrer entre os dias 19 e 23 de novembro, inclusive no feriado do dia 20, no Largo da Batata, em Pinheiros. No local, os inadimplentes poderão negociar diretamente com as empresas credoras.
Limpar o nome e voltar às compras
Faz quase um ano que o pedreiro autônomo Jilvan Ribeiro da Silva, de 56 anos, casado e pai de duas filhas, deixou de pagar o boleto do cartão do supermercado. Ele ficou inadimplente porque quebrou braço e não pode trabalhar.
Com a volta à atividade, Silva tem um dinheiro extra para receber. Ele quer quitar a dívida com o supermercado que, nas suas contas, era de cerca de R$ 800 quando deixou de pagar a fatura. A intenção é limpar o nome para comprar materiais de construção, a fim de erguer a casa própria. “A vida está mais apertada, mas eu limpando o nome já fica melhor.”
O pedreiro cita como aperto a alta do preço da carne, que passou a ser menos frequente na refeição da família.” No dia que não dá para comer carne, a gente come verdura e está de bom tamanho.”
Inadimplente desde a época da pandemia quando ficou desempregado, Adriano Vicente de Oliveira, 49 anos, voltou a trabalhar como auxiliar de limpeza. Ele é outro que quer renegociar a dívida que acumula por conta da compra de um celular.
Ele também sente o peso hoje da inflação dos alimentos. Conta que tem optado pelo frango e pelo ovo no lugar da carne bovina por causa do preço elevado.
Apesar dos apertos, Oliveira quer limpar o nome para se preparar para receber a filha que vai nascer no ano que vem. Ele quer estar apto a pegar um crédito para comprar carrinho, remédio, fralda, por exemplo. “Eles estão falando de 99% de desconto da dívida no discurso. Deus ajude que sim”, diz o auxiliar de limpeza.
De acordo com Thiago Ramos, coordenador da Serasa, no feirão deste ano, 9,3 milhões de dívidas estão com descontos de 99%. “Os descontos neste ano estão mais favoráveis porque temos mais dívidas com esse abatimento.”
Na prática, oferecendo abatimentos dessa magnitude, os credores recuperaram uma parcela muito pequena da dívida. Mas o objetivo principal é ter o consumidor de volta às compras, como o pedreiro Silva e o auxiliar de limpeza Oliveira.
Um diferencial do feirão deste ano é o “carrinho de dívidas”, diz Ramos. Isto é, o consumidor pode renegociar mais de uma dívida e pagar todas por meio de um único boleto, com o mesmo prazo de parcelamento, que vai 72 meses ou seis anos.
Desde o início do feirão em dia 28 de novembro até o último dia 13 pela manhã, 2,899 milhões de dívidas tinham sido renegociadas no evento, um pouco mais de 1% do total.
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