BRASÍLIA – O primeiro projeto que regulamenta a reforma tributária só conseguiu ser aprovado na Câmara após novas concessões a setores com forte atuação pelos corredores e gabinetes do Congresso; mas, ainda assim, os principais pontos da proposta foram preservados. Essa é a visão da consultora internacional e especialista em Imposto sobre Valor Agregado (IVA) Melina Rocha – que se mudou para o Canadá para estudar o modelo de IVA dual, o mesmo que será aplicado no Brasil.
A especialista avalia como positiva a inclusão pelos deputados de uma espécie de “trava” para a alíquota de referência do IVA em 26,5% – valor projetado pela equipe econômica –, mas defende o aprimoramento no texto para que o mecanismo seja efetivo. “Poderia ser melhorada a redação dessa trava, para realmente garantir que a alíquota não seja maior do que isso”, disse Melina em entrevista ao Estadão.
O projeto aprovado na Câmara, o governo federal só determina que o o governo envie um projeto de lei para o Congresso com medidas para compensar um eventual aumento de alíquota – sem a obrigatoriedade de ele ser apreciado pelos parlamentares.
Ela diz ainda que a inclusão das carnes na cesta básica com imposto zero foi um “erro técnico” por favorece a população mais rica, e que o ideal seria ampliar o modelo do cashback (devolução dos tributos pagos) para famílias de baixa renda, conforme defendia a equipe econômica.
Melina Rocha está entre os participantes do evento “A indústria no Brasil hoje e amanhã – a importância do ambiente econômico para o futuro do setor industrial”, uma realização do Estadão com apoio institucional da Fiesp, Ciesp, Firjan e CNI. O evento ocorre na próxima terça-feira, 23, no salão nobre da Fiesp. As inscrições podem ser feitas aqui. As vagas são limitadas.
Veja abaixo os principais pontos da entrevista.
A Câmara aprovou o primeiro projeto de regulamentação da reforma tributária. Como avalia o texto aprovado?
Na minha visão, a Câmara preservou os pilares do IVA: a questão da base ampla, da não cumulatividade plena, do destino (a tributação onde os bens são consumidos) – os pilares básicos internacionais. Houve alguns ajustes muito positivos, com relação, por exemplo, ao split payment: ficou mais claro como vai se dar a operacionalização desse modelo. Em relação às concessões, houve a entrada das carnes na cesta básica, o alargamento em relação aos medicamentos – os de prateleiras estavam submetidos à alíquota-padrão e foram para a alíquota de (desconto de) 60% –, o aumento do cashback... Todas esses medidas que foram incluídas são de cunho mais político, mas faz parte. Do ponto de vista técnico, os especialistas sempre defenderam uma alíquota única e regimes diferenciados apenas para bens imóveis e serviços financeiros, mas já na PEC não foi possível, por questões políticas. Fora isso, em geral, o modelo foi preservado.
Como vê o risco de a alíquota padrão do Brasil passar de 27% e se tornar a maior do mundo?
Essa alíquota, se passar de 27%, reflete a carga tributária atual dos tributos sobre o consumo. Há uma prerrogativa na emenda constitucional de que a alíquota-padrão vai ser calculada de forma a manter a carga tributária dos atuais tributos. Então, é o que hoje a gente já paga. É um pouco impróprio comparar alíquotas, porque isso depende de escolhas feitas pelos países. Há países que têm IVA de 15%, mas que aplicam o imposto sobre todos os produtos e serviços e não têm alíquotas diferenciadas e reduzidas. Se a gente pegar 27% mais uma série de alíquotas reduzidas, de alíquotas zero, a base de incidência será menor. Significa que a alíquota efetiva vai ser menor que 27%. E, além do mais, muitos outros países que têm alíquota baixa de IVA tributam mais a renda – então, não há como comparar com outros países.
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Uma alíquota de 27% pode deixar o sistema disfuncional?
Não impacta o modelo geral do IVA, pelo contrário – continua sendo base ampla. O que acontece hoje é que temos uma base muito fragmentada entre os diversos tributos. Um aspecto positivo da reforma é reunir todos os bens e produtos sob dois tributos, IBS (IVA estadual e municipal) e CBS (IVA federal). Os IVAs mais modernos conseguiram ter menos exceções e uma base mais ampla, mas o padrão no mundo é ter alíquotas diferenciadas e zero para uma série de bens e serviços. O Brasil não fugiu dessa regra, principalmente levando em consideração o nosso modelo atual, o nosso ponto de partida, que é ter uma série de regimes diferenciados.
A sra. mencionou aprimoramentos no ‘split payment’. O que mais viu de avanços e retrocessos na Câmara?
Um avanço bem positivo foi a figura do nanoempreendedor, que exclui da definição de contribuintes pessoas físicas que tem receita bruta inferior a R$ 40,5 mil – metade do MEI (Microempreendedor Individual). Isso é muito positivo, porque essas pessoas não vão ser contribuintes do IBS e da CBS; portanto, não precisam aplicar os tributos nas suas operações. É algo que é padrão também nos modelos internacionais de IVA. No Canadá, há essa mesma regra excluindo da incidência quem pratica operações de até 30 mil dólares canadenses.
O que mais viu como positivo?
Houve diminuição da alíquota do setor imobiliário, de 40%, para operações em geral do setor – compra e venda de imóveis, decorrente de incorporação, parcelamento de solo – e uma redução de 60% para locação. Uma coisa que é preciso esclarecer, houve até uma nota do governo federal: o regime de operações de bens imóveis só se aplica para quem tem como atividade alienação de imóveis, locação. Então, não se aplica a uma pessoa física que vai alugar ou vender um apartamento. Se for pessoa física que não tenha atividade imobiliária, não vai se aplicar esse regime, nem o IVA. Com o ajuste, acredito que se adequou à carga tributária atual do setor. Foram incluídos também construção civil e intermediação imobiliária.
Era preferível aumentar o cashback no consumo de carnes para as famílias mais pobres. Dessa maneira, você desonera só quem precisa.
E o que avalia como negativo no texto aprovado na Câmara?
Do ponto de vista técnico, a questão das carnes (na cesta básica com imposto zero), acredito que foi negativo, porque isso vai fazer com que a alíquota-padrão dos demais bens e serviços aumente. Segundo, a medida é regressiva, à medida que desonera mais as famílias mais ricas, que consomem mais as proteínas em termos nominais.
No Senado, teremos novas pressões de setores e grupos de interesse...
A gente já sabe que o senador Eduardo Braga (MDB-AM) vai ser o relator, o que é muito positivo. Primeiro, porque ele já foi relator da PEC no Senado – já tem conhecimento sobre a matéria, já sabe as questões que são sensíveis; e o trabalho que ele fez relatando a PEC foi muito positivo. Então, se espera que ele tenha consciência de que qualquer inclusão na cesta básica, ou na alíquota reduzida de 60%, vai ter impacto na alíquota-padrão. Essa trava de 26,5% na alíquota, que foi incluída na Câmara, poderia ter a redação do texto melhorada, para se definir como será aplicada. A trava é importante para garantir que a alíquota não vai ser maior do que isso.
Do jeito que ficou, o Executivo envia um projeto de lei, mas não necessariamente vira uma trava...
Exatamente. Isso poderia ser feito de forma mais efetiva.
Vários setores tiveram benefícios ampliados. Qual foi o saldo final?
Acredito que o texto já está na medida para satisfazer os setores. O ideal seria não aumentar no Senado, atender novas demandas, porque elas vão impactar a alíquota geral. Acredito que foram feitas concessões que atenderam as demandas; mas agora o Senado deveria ter mais atenção para não ampliar isso.
A indústria é o setor que hoje mais paga impostos. Como a reforma impacta o segmento?
Acho que a indústria vai ser a mais beneficiada, porque hoje é sobre ela que recai a maior parte da carga tributária. A principal medida positiva é a não cumulatividade – ou seja, o creditamento de todos os maquinários, bens de ativos fixos que as indústrias adquirem para o processo de produção. Então, a regra geral na emenda constitucional é que a indústria vai ter crédito total para todas as aquisições, salvo bens de uso e consumo que são questões muito específicas. Isso vai fazer com que o custo da indústria seja reduzido. Com isso, ela pode diminuir os preços dos produtos. A indústria para exportação vai ter a devolução dos créditos acumulados – inclusive houve diminuição desse prazo.
Acredito que foram feitas concessões que atenderam as demandas; mas agora o Senado deveria ter mais atenção para não ampliar isso.
Para 30 dias?
Isso, caiu de 60 para 30 dias, quem está no programa de conformidade, que são prioritariamente exportadores. São 30 dias para ativos não imobilizados; então, se ela compra uma máquina, algo que desembolsou um valor maior, vai ter devolução em 60 dias, e a regra geral passou de 270 para 180 dias.
O agronegócio saiu pagando pouco? E como ficam os serviços?
No modelo IVA, não é o setor que paga, que sofre o ônus econômico do tributo. Quem sofre é o consumidor final. O agro, em princípio, por conta da não cumulatividade, do creditamento, eles são desonerados – tanto o agro, quanto a indústria e o comércio. Quem está no meio da cadeia vai ser desonerado, por conta do creditamento amplo. É errada essa discussão de que o setor ganha ou perde. Não é o setor que paga, é o consumidor final. Essa lógica acho que ainda é muito presente no Brasil.
Mas o setor não perde competitividade se o preço ficar mais alto para o consumidor?
Isso é mitigado pelo prazo de transição. O IBS só vai ser implementado de forma plena em 2033. Não haverá mudança de preço tão brusca em nenhum setor, como se coloca no debate. Por conta da transição, os preços vão se ajustar no mercado, de modo que os produtores, de qualquer setor – comércio, agrícola, indústria –, e os fornecedores possam repassar o tributo no preço final ao consumidor final. A regra geral é que os preços devem diminuir por causa da eliminação da cumulatividade da cadeia, o resíduo tributário. A regra geral é para que haja uma diminuição dos preços e dos produtos. Isso é o que apontam todos os estudos.
Para os serviços é a mesma lógica?
Exatamente a mesma lógica. Os serviços no IVA tendem a se beneficiar porque, quando é prestado para outro contribuinte, tudo que incide sobre aquela operação vai ter crédito integral – coisa que não acontece hoje. Serviços prestados para consumidor final, a maior parte deles está no Simples, ou no MEI – e não vão ser impactados por aumento da carga tributária, por conta de estarem nesses regimes especiais. E os próprios prestadores de serviços vão ter esses creditamentos que hoje eles não têm. Então, hoje eles pagam ICMS nos equipamentos que eles utilizam, na energia elétrica, telecomunicações; pagam valor alto que não pode ter direito à crédito. Com IBS e CBS, eles vão ter o crédito nas aquisições. Há estudos que colocam que os serviços vão ser beneficiados, principalmente pela não cumulatividade que o sistema vai ter.
Dentro da indústria, há segmentos que podem se beneficiar mais?
Acredito que, dentro das indústrias, as que produzem para exportar vão ser muito beneficiadas. Primeiro pelo não creditamento; segundo, pela devolução rápida dos créditos acumulados. Hoje não acontece –demora anos para ser devolvido, quando é devolvido. Assim como o agro, exportador vai se beneficiar muitíssimo; agro e indústria. Mas todos vão ser beneficiados.
O que espera do segundo projeto de lei, que ainda precisa ser votado na Câmara? Há dúvidas sobre o contencioso do IBS e CBS...
O modelo escolhido é de IVA dual, com dois tributos separados, mas a legislação e as normas gerais têm que ser exatamente as mesmas. Mas não é porque as regras gerais vão ser iguais que o contencioso (disputas tributárias) tem que ser único. Muita gente argumenta que sim, mas não concordo, apesar de ser o ideal. Tendo em vista que a Constituição optou por IVA dual, não vejo problema em ter contenciosos separados. A CBS vai ter o Carf e o IBS vai ter o Comitê Gestor. É algo que tem muita discussão por parte de juristas, de que a interpretação precisa ser único, mas discordo. E dou exemplo do Canadá, que tem sistema de IVA dual. Temos uma legislação que é igual para Quebec, que é o IVA federal, mas em Quebec tem o seu contencioso separado, administração tributária, fiscalização, tudo separado. E o governo federal tem outra – e funcionam perfeitamente bem. O ideal seria juntar, mas não vejo problema em ser separado.
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