Affonso Celso Pastore, que nos deixou em fevereiro, foi um economista completo, com atuação destacada na academia, na gestão da política econômica e referência entre as consultorias econômicas independentes atuando no País. Sempre generoso, ele acabou se despedindo com um presente, o livro Caminhos e descaminhos da estabilização: uma análise do conflito fiscal-monetário no Brasil. As várias facetas de Pastore como economista aparecem em diferentes medidas ao longo do texto, mas o rigor intelectual é sempre o mesmo. Outra constante é situar os desenvolvimentos locais no seu contexto internacional – indo contra a tradição nacional de observar tudo sob a insular ótica doméstica.
Depois do prefácio de Ilan Goldfajn, seguem seis capítulos que tratam do histórico brasileiro com regimes de câmbio fixo (capítulo 1), a transição para o tripé macroeconômico e sua consolidação (capítulos 2 e 3), as origens e reações de política econômicas às crises de 2008 e 2011 (capítulos 4 e 5), o impacto da pandemia (capítulo 6) e o epílogo.
O primeiro período de câmbio fixo se refere ao regime de Bretton-Woods, segundo o qual os países deveriam manter taxas de câmbio fixas, porém ajustáveis, em relação ao dólar. No caso brasileiro, a combinação de câmbio fixo com a inflação cronicamente elevada que os governos se recusavam a combater, acabou reforçando tendências protecionistas pré-existentes, bem como a adoção, na prática, de um regime de taxas múltiplas de câmbio – tudo sob o modelo de industrialização por substituição de importações. A formação de Pastore se deu nesse ambiente intelectual, que felizmente não o contaminou. Sua tese de doutorado foi sobre a reação da produção agrícola brasileira aos preços e demonstrou, com o apoio empírico que os chamados desenvolvimentistas não costumam apreciar, algo que, olhando hoje, parece evidente, mas que era questionado na época: o agro brasileiro é racional e responde a preços de forma esperada.
O segundo, muitos anos depois, foi o período de câmbio fixo, porém deslizante, durante a fase inicial do Plano Real – 1995 a 1999. Pastore entendia que o câmbio fixo permitiria uma desinflação mais rápida e menos custosa em termos de atividade econômica do que uma mudança imediata para uma âncora monetária. No entanto, ele também observava que essa estratégia criava risco de sobrevalorização cambial e vulnerabilidade para choques e contágio externo. E, Pastore ressalta, tais riscos e vulnerabilidades seriam tanto maiores, quanto menos contida fosse a política fiscal – o livro mostra que no país a responsabilidade pela estabilização, dado o histórico fiscal expansionista, tem recaído de forma desproporcional sobre a política monetária e o Banco Central (BC).
Na sequência, Pastore trata das políticas econômicas do regime militar, e dos primeiros e frustrantes anos da Nova República. Resumindo, a política econômica entre 1964 e 1985 passou por três momentos críticos, bem descritos no livro. O Plano de Ação Econômica do Governo, o PAEG, marcou o início da colocação de títulos públicos indexados à inflação. Houve posteriormente a adoção da sistemática de minidesvalorizações cambiais, visando defender uma meta para a taxa de câmbio real. Pastore mostra analiticamente que a adoção desse regime implica que, sem uma âncora nominal, os choques de oferta levam a mudanças no patamar inflacionário, e não no nível de preços. O terceiro divisor de águas da política econômica sob os militares foi a decisão, no início do governo Geisel, de reagir ao primeiro choque do petróleo, redobrando a aposta na industrialização por substituição de importações, financiada pelo aumento do endividamento externo. Foi uma estratégia arriscada. Os choques de petróleo e juros na virada dos anos 70 para os anos 80 determinaram o seu fracasso, e levaram à crise da dívida, que marcaria a política econômica brasileira até o início dos anos 1990.
Nesse ambiente conturbado, Pastore assume o Banco Central em 1983. Na época, o BC tinha atividades múltiplas, incluindo de banco de fomento (havia até uma carteira de crédito agrícola), bem como gestão da dívida pública. Pastore assumiu no auge da crise da dívida, com reservas líquidas negativas em dois bilhões de dólares. Sua atuação como presidente do BC foi voltada para a renegociação da dívida junto aos bancos privados e a restauração de linhas de comércio exterior, sem as quais o país sequer lograria aumentar suas exportações. Do ponto de vista macroeconômico, o BC tratava de impedir a erosão dos ganhos de competitividade derivados da maxidesvalorização de fevereiro de 1983, o que, como vimos acima, inviabilizava o uso da política monetária para controlar a inflação – entre o equilíbrio externo e interno, optou-se emergencialmente pelo primeiro.
Os primeiros anos da Nova República tiveram Pastore de volta à academia, mas nunca longe do debate público. No livro, ele corretamente os descreve como uma era caótica, marcada pela sucessão de planos heterodoxos fracassados. Mesmo assim, houve avanços, como a criação da Secretaria do Tesouro Nacional, que assumiu responsabilidades de gestão de dívida pública, aprimoramentos na capacidade operacional do BC e progresso nas negociações da dívida externa nos anos que precederam o Real. No final desse período, em 1993, Pastore criaria a AC Pastore & Associados, consultoria econômica que se tornou a referência nesse mercado.
O livro volta-se na sequência aos desafios de política econômica sob o Real. Com o esgotamento do regime de câmbio “fixo”, no início de 1999, foi necessário adotar outra âncora nominal. A opção foi pelo regime de metas para a inflação, que já vinha sendo praticado por importantes bancos centrais. Além disso, foi importante iniciar um forte ajuste fiscal, para afastar a dívida de patamares então vistos como perigosos, em torno de 60% — o ajuste viria baseado no aumento de receitas, dada a dificuldade que perdura em cortar gastos. A habilidosa condução da política monetária permitiu que o regime fosse implantado com êxito ao longo de 1999. Havia, contudo, um calcanhar de Aquiles, pois parte importante da dívida era dolarizada, o que tornava sua dinâmica muito sensível à evolução da taxa de câmbio, e abria espaço para ciclos viciosos de depreciação e piora da trajetória da dívida – o país viveria esses ciclos em 2001 e, particularmente, 2002.
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Foi nesse período que conheci Pastore. Estava retornando ao País depois de oito anos no exterior (entre o doutorado em Oxford e o FMI) e assumi a posição de economista-chefe em um banco para o qual ele prestava consultoria. Suas apresentações mensais eram sempre muito populares e serviam como um controle de qualidade da nossa própria avaliação de cenário. O “professor” era sempre franco, direto e intelectualmente rigoroso, mas sempre construtivo também.
O livro descreve no detalhe o teste de estresse vivido pelo regime de metas para a inflação em 2001 e 2002. O primeiro ano foi marcado pela prolongada agonia do regime argentino de paridade cambial, pela crise energética e, claro, pelos atentados de 11 de setembro. O segundo, pela incerteza pré-eleitoral, que levou a uma forte depreciação cambial e aumento do risco-país. A oposição, que era favorita para ganhar as eleições, repudiara frontal e publicamente, antes da campanha eleitoral, vários aspectos do “tripé macroeconômico” vigente (metas para a inflação, câmbio flutuante e superávits primários voltados para garantir a sustentabilidade da dívida) – e levantara dúvidas sobre a legitimidade da dívida pública. A depreciação atingiu a economia quando a inflação já estava alta, e um corte da Selic em julho de 2002 não ajudou a ancoragem de expectativas. A reação veio em outubro, com um aumento de 300 pontos base na taxa de juros, em reunião extraordinária do Copom. Paralelamente, a equipe econômica de FHC já havia estabelecido contato com as equipes dos principais opositores, que, depois do susto, passaram a sinalizar disposição para manter o tripé.
Pastore destaca que, dada a preservação dos fundamentos da política econômica, em um contexto global favorável, graças ao impacto do crescimento chinês sobre a atividade econômica e os preços de commodities, criou-se uma opção antes inexistente. O BC poderia simplesmente aproveitar os efeitos desinflacionários da apreciação da moeda para reduzir agressivamente a taxa Selic. Ou poderia aproveitar a conjuntura favorável para enfrentar nossa crônica fragilidade externa, comprando reservas internacionais. A formiga prevaleceu sobre a cigarra, e o acúmulo de reservas mostrou-se um divisor de águas para a política econômica brasileira, e para nossa estatura na comunidade financeira internacional.
Como consultor, Pastore comentava regularmente sobre o Copom, antes e durante o longo processo de flexibilização monetária, de 2005 a 2007 – eu, que estava no BC na segunda parte desse movimento, tinha virado vidraça. Neste ciclo, após um aperto vigoroso da política monetária, a Selic foi sendo reduzida com parcimônia e constância, o que domou, por um tempo, as expectativas de inflação, bem como viabilizou uma sólida retomada da atividade econômica. No entanto, a atitude ambígua de parte do governo em relação ao regime de metas e o progressivo aquecimento da economia, influenciado pelo boom de commodities – o PIB cresceu 9,3% em termos anualizados no segundo trimestre de 2008 – levaram a uma piora das perspectivas inflacionárias, suscitando uma reação pelo BC – ao contrário de alguns observadores politicamente engajados, Pastore entendeu perfeitamente a lógica da atuação do Copom naquela ocasião.
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Com a deterioração da economia global e aumento da aversão ao risco pós-Lehman, o real acumulou uma depreciação superior a 60% nos últimos meses de 2008, e a inflação atingiu um pico de 6,4% em novembro, muito próxima do limite superior do intervalo de tolerância. Como descreve Pastore, o BC tratou nesse período de restaurar o crédito, em reais e dólares, por meio de diversas iniciativas à época inovadoras, como o swap de moedas com o Fed. Em janeiro de 2009, quando as perspectivas para a inflação permitiram, o BC iniciou um agressivo processo de flexibilização, que ajudou na posterior retomada da atividade. Graças à defesa da ancoragem de expectativas e ao acúmulo de reservas internacionais, o BC pode reagir de forma anticíclica, em contraste com episódios anteriores. Como se sabe, ainda que profunda, a recessão duraria apenas dois trimestres no Brasil.
O enfrentamento da Grande Crise Financeira permitiu ao governo, com apoio entusiástico do FMI, embarcar em uma forte expansão fiscal e parafiscal (pelos empréstimos de bancos oficiais). A proximidade do ciclo eleitoral de 2010, evidentemente, foi um estímulo adicional para a guinada da política fiscal.
O livro, a partir daí, passa a tratar dos descaminhos do governo Rousseff. Essa gestão assistiu, em especial a partir de 2014, uma forte deterioração da política fiscal, derivada da combinação de cortes seletivos de impostos e a tradicional resistência ao controle de gastos. Pastore descreve, com precisão, que foi uma gestão caraterizada pelo ativismo, sem uma estratégia aparente de médio prazo. A política parafiscal também entraria em modo turbo. A política monetária, por sua vez, teve dois períodos distintos. Depois de um início convencional, o Copom partiu para uma postura sensivelmente mais tolerante ao risco inflacionário a partir de agosto de 2011. Não tardou para os agentes perceberem que a atuação do BC havia mudado, e Pastore, sempre atento e rigoroso, usou métodos econométricos para estimar uma meta implícita de inflação, que se situava no topo, ou acima, do intervalo de tolerância. A partir de 2013, o BC volta às suas práticas usuais e começa a enfrentar o descolamento da inflação por meio de um forte aperto monetário. No entanto, com a credibilidade abalada pelos eventos de 2011-2012, o esforço do BC não gerou resultados importantes – estes só viriam quando a instituição já estava sob nova direção. No campo fiscal, a tentativa de correção de rota em 2015 nunca contou com o necessário apoio político.
O cenário se alterou drasticamente no governo Temer. Do lado monetário, uma ampla mudança na diretoria do BC, bem como a acertada decisão de não ajustar a meta de inflação, abriram caminho para uma expressiva e segura redução da taxa Selic. Já na parte fiscal, o governo inovou com o chamado “teto de gastos”. De forma arguta, Pastore caracteriza o “teto” como essencialmente um gesto político, que comprava tempo para o governo, dado que seria inviável voltar a gerar superávits primários no curto prazo, e cuja eficácia iria requerer a aprovação de reformas voltadas a conter o ritmo de crescimento das despesas, em especial a da previdência. O retorno da disciplina fiscal e, importantíssimo, a progressiva redução dos montantes de crédito subsidiado, permitiram uma importante redução da taxa de juros neutra. As mudanças ocorridas na taxa neutra na transição Rousseff-Temer são utilizadas por Pastore para ilustrar um ponto muito importante: a taxa de juros real neutra é muito influenciada pela política fiscal, ao passo que a taxa real efetiva reflete em boa medida ações de política monetária.
O capítulo final cobre a política econômica brasileira na pandemia. O texto mostra que a política fiscal do “teto” até que resistiu à pandemia, o déficit primário de 9,2% do PIB em 2020 tornou-se um superavit de 0,7% em 2021, um ajuste fiscal sem igual no país, e raro no mundo. Mas o “teto” não resistiu ao ciclo político-eleitoral de 2022. As regras foram sendo flexibilizadas sequencialmente e o regime foi definitivamente abandonado em 2023. Do lado da política monetária, o compromisso com as metas para a inflação continuou, ainda que por vezes o BC pareça ter adotado atitude ousada. Quando do início da pandemia, depois da retomada do relaxamento monetário, o país já estava com uma taxa de juros reduzida. Mas o choque foi tamanho que abriu espaço para flexibilização monetária adicional. Com isso, a Selic chegou a 2% ao ano. Diante desse patamar de juros, houve importante realocação de portfólio para fora do país - enquanto moedas de outros países emergentes apreciaram, depois de uma depreciação inicial, o real se depreciou e não reagiu posteriormente. A depreciação contribuiu para o surto inflacionário que se seguiria, mas que foi combatido decisiva e tempestivamente pelo BC.
Pastore distila as lições, sob a forma de advertências, no epílogo. A primeira é que os Bancos Centrais devem atuar sempre com independência em relação a governos e mercados, mirando a ancoragem da inflação para a meta. A segunda, que a fé nas virtudes do expansionismo fiscal é errônea, e acaba apenas levando a taxas de juros neutras mais elevadas. Parecem observações triviais, mas, como o livro ilustra, o Brasil tem recorrentemente deixado de observar esses princípios básicos, se deixando levar pelo voluntarismo. A economia é mais séria do que isso – e essa é a principal lição que devemos aprender com o Pastore.
*Economista-chefe do Itaú Unibanco, foi diretor de Política Econômica do Banco Central do Brasil e atuou no Fundo Monetário Internacional (FMI)
Caminhos e descaminhos da estabilização
- Autor: Affonso Celso Pastore
- Editora: Portfolio-Penguin (240 págs.; R$ 99,90)
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