Carnes, remédios, trava para o IVA: entenda o texto da reforma tributária aprovado na Câmara

Veja ponto a ponto principais mudanças feitas pelos deputados em relação à proposta de regulamentação enviada pela equipe econômica

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Atualização:

Setenta e sete dias após o governo enviar ao Congresso Nacional o projeto de regulamentação da reforma tributária, a Câmara dos Deputados aprovou o primeiro texto referente à proposta.

O projeto, que agora segue para análise do Senado, incluiu uma trava para alíquota do novo Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que não deverá ultrapassar 26,5%, e inseriu as carnes na cesta básica com imposto zero, após forte pressão do setor de alimentos, da bancada do agronegócio e da defesa do próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Votação da regulamentação da reforma tributária na Câmara, em 10 de julho. Texto-base foi aprovado por 336 votos – eram necessários 257.
Votação da regulamentação da reforma tributária na Câmara, em 10 de julho. Texto-base foi aprovado por 336 votos – eram necessários 257. • Wilton Junior/Estadão

O texto também colocou o carvão, os jogos de azar e os carros elétricos na lista de alvos do chamado “imposto do pecado”, que vai incidir sobre produtos considerados nocivos à saúde e ao meio ambiente. A proposta ainda amplia o cashback e reduz a alíquota para uma série de medicamentos.

Veja abaixo os principais pontos da proposta e as mudanças aprovadas pelos deputados na comparação com o texto enviado pela equipe econômica.




Carnes na cesta básica

A inclusão das carnes na cesta básica com imposto zero foi o principal embate da regulamentação na Câmara. O grupo de trabalho responsável deixou as proteínas animais de fora da lista de produtos isentos no relatório preliminar, bem como no parecer final, do relator Reginaldo Lopes (PT-MG).

Assim, o texto-base da proposta foi aprovado sem as carnes na cesta. Porém, nos últimos instantes da votação, o relator informou que decidiu atender aos pleitos e orientou pela aprovação de destaque (sugestão de mudança no texto principal) apresentado pela oposição. A proposta, aprovada por 477 votos, previa a inclusão de carnes, queijo e sal na cesta básica com imposto zero.

Wilton Junior/Estadão


“Estamos acolhendo no relatório da reforma todas as proteínas. Carnes, peixes, queijos e, lógico, o sal, porque o sal também é um ingrediente na culinária brasileira.”
Deputado Reginaldo Lopes (PT-MG),
relator da regulamentação da reforma tributária na Câmara

Desde as primeiras horas da quarta-feira, 10, a bancada ruralista tentava incluir as carnes na cesta básica. A articulação foi encampada pela Frente Parlamentar da Agropecuária, que conta com o apoio de 324 deputados, sendo a maior bancada da Casa. Na proposta da Fazenda as carnes estavam na alíquota reduzida, com 60% de desconto na tributação.

A movimentação ganhou o reforço do Palácio do Planalto nos últimos dias, com falas do presidente Lula em defesa da isenção das carnes – cobrado pela promessa de campanha de que o brasileiro iria voltar a consumir picanha. Porém, se de um lado Lula afirmou que vai “ficar feliz se puder comprar carne sem imposto”, de outro, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse que isentar as carnes pode deixar o “preço pesado”, em referência ao impacto na alíquota padrão do IVA (leia mais abaixo).

A inclusão das carnes na cesta básica gerou um embate entre governo e oposição pela “paternidade” da proposta.

“É muito fácil a oposição, agora, dizer que foi ela que conquistou (a inclusão de carnes na cesta). Não é verdade; eles votaram contra a reforma tributária o tempo inteiro e têm nas suas costas a fila do osso sem carne para o povo brasileiro.”
Jandira Feghali,
Deputada (PCdoB-RJ)
“Vitória da oposição. Vitória do PL. Vitória da FPA. Esse governo cometeu estelionato eleitoral: prometeu picanha e só entregou pé de frango. E agora, aos 45 minutos, vendo que ia perder de lavada, mudou seu voto.”
Rodolfo Nogueira,
Deputado (PL-MS)

Como mostrou o Estadão, a JBS, empresa de proteína animal dos irmãos Batista, mobilizou e quase alterou o resultado da votação na Câmara referente às carnes. A proximidade da companhia com o governo do presidente Lula virou munição de críticos durante o debate e foi assunto de uma conversa a portas fechadas entre o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Além das carnes, queijos e sal, incluídos no plenário, o relator já havia incluído na cesta básica óleo de milho, aveia e farinhas.



Além disso, o deputado retirou salmão e atum da alíquota cheia, que migraram para o grupo da alíquota reduzida, com 60% de desconto. Já bacalhau e ovas (caviar), por exemplo, seguem pagando 100% do IVA. Pão de forma e extrato de tomate também foram contemplados com a alíquota reduzida.



Além disso, houve a inclusão de plantas e produtos de floricultura no grupo de produtos hortícolas, que conta com redução de 100% da tributação. Outro pleito atendido pelos ruralistas foi a inclusão de nove itens na categoria de insumos agropecuários e aquícolas, que contam com redução de 60% do IVA.


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Trava para o IVA ou IVA maior do mundo?

Diante do receio de aumento na alíquota padrão, os deputados incluíram no texto, como antecipou o Estadão/Broadcast, uma trava para evitar que a cobrança do IVA ultrapasse 26,5%, como projetado inicialmente pela equipe econômica.

A trava passaria a valer a partir de 2033, depois do período de transição da reforma tributária, que começa em 2026. Caso a alíquota ultrapasse o limite, o governo seria obrigado a formular, em conjunto com o Comitê Gestor do IBS, um projeto de lei complementar com medidas para reduzir a carga tributária.

A maior preocupação é com o impacto da isenção das carnes na alíquota cheia do IVA. Nos cálculos do Ministério da Fazenda, a alteração representará uma elevação de 0,53 ponto porcentual, o que faria a alíquota média passar de 26,5% para 27%. Já nos cálculos do Banco Mundial, o impacto será de 0,57 ponto.



Assim, a inclusão das carnes na cesta zerada e outras alterações feitas no texto pelos deputados podem fazer com que a alíquota do novo IVA se torne o maior do mundo.

As contas ainda são preliminares; mas, de acordo com o economista e tributarista Eduardo Fleury, fundador do escritório FCR Law e chefe da área de direito tributário, a alíquota do IVA brasileiro deve chegar a pelo menos 27,2% – acima dos 27% da Hungria, hoje a maior do mundo.

Estadão
O Ministério da Fazenda informou que está atualizando os cálculos com as mudanças feitas pelos deputados, e deve divulgar uma projeção oficial em breve para a alíquota de referência do IVA.


“O texto é bem frágil. Ele só obriga o governo a mandar o projeto, mas não obriga que Estados e municípios reduzam as alíquotas, o que seria inconstitucional.”
Eduardo Fleury,
tributarista

Quanto à trava incluída no texto, Fleury considera que esse dispositivo não garante que a alíquota fique dentro desse patamar.


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Mais alvos no ‘imposto do pecado’

O texto aprovado pela Câmara incluiu o carvão mineral na lista de produtos sujeitos ao Imposto Seletivo, o chamado “imposto do pecado”, que vai incidir sobre itens considerados nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Por outro lado, o texto cria uma trava de 0,25% para a alíquota do Seletivo que incidirá sobre bens minerais extraídos, como petróleo, minério de ferro e gás natural. Também foram incluídos pelos deputados os jogos de azar, físicos e digitais (como as apostas esportivas, as “bets”), além dos veículos elétricos, como antecipou o Estadão.

Nas negociações de última hora, os fabricantes de cerveja conseguiram ampliar a progressividade do Seletivo de acordo com o teor alcóolico. Trata-se de uma vitória das cervejarias sobre os produtores de destilados.

Divulgação/Vital Strategies
Assim, pela proposta aprovada na Câmara, serão alvos do Seletivo:

Veículos (incluindo elétricos);
Embarcações;
Aeronaves;
Cigarros;
Bebidas alcoólicas;
Bebidas açucaradas;
Jogos de azar;
Bens minerais extraídos – minério de ferro, petróleo, gás natural e carvão mineral.


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Medicamentos e planos de saúde

Para os remédios foi concedida redução de alíquotas em 60% em todos os registrados na Anvisa ou produzidos por farmácias de manipulação. Antes, esses medicamentos estavam divididos entre desconto de 60% e alíquota cheia. Outra parte dos medicamentos conta com isenção total, e isso não foi alterado.

Benjamin Nolte/Adobe Stock
O relator também contemplou a demanda da bancada feminina e incluiu o DIU (Dispositivo Intrauterino, um método anticoncepcional) e preservativos na lista de dispositivos médicos com redução de 60% do IVA.

Além disso, os deputados zeraram a alíquota de produtos relacionados a cuidados com a saúde menstrual, como absorventes. Já o Viagra (citrato de sildenafila), usado para o tratamento de disfunção erétil e da hipertensão pulmonar, por sua vez, saiu da lista de isentos migrou para a alíquota reduzida, com desconto de 60%.

O texto autoriza que as empresas se creditem de planos de saúde coletivos previstos em convenção, o que antes era proibido pela proposta da Fazenda. Os deputados também incluíram planos de saúde de animais domésticos, os pets, com alíquota reduzida em 30%. A inclusão foi comemorada pela primeira-dama, Janja da Silva.


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Mais cashback

O texto ampliou o cashback, o sistema de devolução de parte do imposto pago a pessoas de baixa renda. A proposta amplia a devolução de CBS (IVA federal) de 50% para 100% nas operações de fornecimento de energia elétrica, água, esgoto e gás natural encanado.

100% da CBS (IVA federal) e 20% do IBS (IVA estadual e municipal) para botijão de gás (13 kg);
100% da CBS e 20% do IBS para as contas de luz, água e esgoto e gás encanado;
20% da CBS e do IBS sobre os demais produtos.

Para o cálculo da devolução, serão consideradas as compras nos CPFs de todos os membros da unidade familiar, e não apenas do representante.


‘Nanoempreendedor’

O projeto aprovado pelos deputados cria a figura do “nanoempreendedor”, que terá tratamento diferenciado na comparação ao Microempreendedor Individual (MEI).

O texto estabelece que o nanoempreendedor é aquele que tem receita inferior a R$ 40,5 mil anuais. Quem cumprir esse critério não será contribuinte do IBS e da CBS, a não ser que faça essa opção e não haverá contribuição previdenciária.


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Montadoras no Nordeste

O benefício extra concedido a montadoras instaladas na Região Nordeste foi amenizado na versão aprovada na Câmara. Pelo acordo, o crédito presumido (a ser abatido do imposto do automóvel) a montadoras instaladas no Nordeste será de 11,60%, e não mais de 14,5%, como previa o parecer inicial dos deputados.

Stellantis
Já a proposta da equipe econômica previa que o benefício tributário – uma renúncia no recolhimento de impostos – começasse em 8,7% em 2027 e fosse decaindo gradualmente até chegar a 1,74% em 2032, último ano de vigência do regime automotivo do Nordeste.


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Bares e restaurantes

A Câmara atendeu, ainda, aos pleitos do setor de bares e restaurantes e alterou as regras desse regime específico. A nova versão do texto prevê que os estabelecimentos poderão se apropriar de créditos do IVA nas suas aquisições, os quais serão usados para abater futuros tributos.

Na versão original do projeto, enviada pelo Ministério da Fazenda, o regime era totalmente cumulativo, sob a justificativa de evitar a desoneração, ainda que indireta, de bebidas alcoólicas – itens que estão sujeitos ao Imposto Seletivo.

J Photography | Adobe Stock
Outra demanda acolhida pelos parlamentares diz respeito ao delivery, que foi excluído da base de cálculo do IVA. Isso significa que os valores não repassados aos bares e restaurantes pelo serviço de entrega não serão mais computados para fins de incidência do imposto.

O texto da Câmara também reduziu de 60 para 30 dias o prazo para o ressarcimento de créditos a empresas que não conseguirem abater todo o tributo acumulado ao longo da cadeia produtiva.

O prazo encurtado, que era um pleito da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Associação Brasileira de Companhias Abertas (Abrasca), deverá valer apenas para empresas enquadradas em programas de conformidade dos fiscos.


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Construção civil e mercado imobiliário

Os deputados reduziram a taxação sobre o setor de construção civil e imobiliário. As alíquotas cobradas de incorporadoras e construtoras terão uma redução de 40% em relação à tributação de referência, estimada em 26,5% pelo Ministério da Fazenda.

Já nas operações de aluguel, cessão onerosa e arrendamento – sempre entre pessoas jurídicas – haverá uma redução de 60% em relação à alíquota padrão. Pela proposta original elaborada pelo Ministério da Fazenda, a redução para ambas as modalidades era de 20%.

Wilton Júnior/Estadão
Os deputados também decidiram incluir a construção civil dentro do regime diferenciado do setor imobiliário, o que não havia sido previsto pela Fazenda. As medidas atenderam ao segmento produtivo, que alegou que a tributação, como proposta pelo Executivo, iria elevar o preço dos imóveis.

Quanto ao pagamento de IVA sobre a locação de imóveis por pessoas físicas, o projeto prevê a não incidência, desde que o imóvel não seja utilizado predominantemente em suas atividades econômicas.


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Entrevistas

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‘Empresas carregarão fardo da reforma até 2038, mas País será mais competitivo’, diz tributarista

Tércio Chiavassa

Sócio da Pinheiro Neto Advogados

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Próximo do prazo estipulado para a votação do projeto de lei complementar da reforma tributária, muitos temas seguem pendentes. Entre eles está o da criação de um tribunal específico para julgar contenciosos que devem surgir principalmente no período de transição do atual sistema para o novo, que estabelece o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) Dual.

A proposta está sob responsabilidade do Comitê Gestor do IBS, órgão que será responsável pela cobrança do novo imposto, pelo repasse dos recursos para Estados e municípios e por soluções de conflitos administrativos. Nesse último caso, o objetivo é evitar que diferentes tribunais possam julgar um mesmo caso, mantendo assim a complexidade do sistema atual.

“Se forem mantidos os tribunais de hoje, pode ser que ocorram decisões discrepantes sobre um mesmo tema, o que vai ser muito ruim para a consolidação dessa legislação”, diz Tércio Chiavassa, sócio e coordenador da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados.



Edição: Anna Carolina Papp; Reportagem: Bianca Lima, Mariana Carneiro e Alvaro Gribel; Editora de infografia: Regina Elisabeth Silva; Editores-assistentes de infografia: Adriano Araujo e William Mariotto; Designer multimídia: Lucas Almeida.

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