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China, o gigante com a confiança abalada

Sob lockdowns, verão mais quente em 60 anos e falta de chuva, economia perde ritmo e derruba o otimismo do país

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Foto do author Luciana Dyniewicz
Atualização:

Polo tecnológico da China, a cidade de Shenzen entrou em lockdown no fim de semana passado para testar em massa sua população devido ao aumento de casos de covid. Na segunda, o governo mudou as restrições de distanciamento social e passou a restringir o deslocamento total apenas a bairros considerados de risco alto e médio. Em alguns locais, estabelecimentos como cinemas e teatros permanecerão fechados. Ainda que não seja o lockdown radical que vinha sendo visto até agora, a situação não favorece a economia chinesa, que vem sofrendo golpe atrás de golpe neste ano.

Além dos lockdowns – sendo o de 65 dias em Xangai, no primeiro semestre, o mais duro deste ano –, os efeitos de um verão de altas temperaturas também prejudicaram a economia do país. Em algumas regiões chinesas, foi o verão mais quente dos últimos 60 anos. Com as temperaturas ultrapassando os 40ºC, a falta de chuvas e o importante Rio Amarelo (fonte de energia elétrica e via de escoamento de mercadorias) em um nível historicamente baixo, fábricas tiveram de suspender suas operações e a produção de grãos, como milho, caiu.

Ao fundo, obra em Pequim; a construção civil, responsável por 25% do PIB chinês, está em crise Foto: Thomas Peter/Reuters

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A esses fatores, soma-se a perda de confiança do consumidor. De acordo com o escritório de estatísticas da China, desde abril, a confiança no país está em seu patamar mais baixo da série histórica, iniciada nos anos 1990. Nos últimos meses, o indicador ficou ao redor de 87 e 88 pontos, em uma escala de 0 a 200, na qual números inferiores a 100 indicam pessimismo.

O desânimo do consumidor chinês está diretamente relacionado à crise do setor imobiliário, que se desenrola há mais de um ano e é o grande problema do país hoje. Em 2021, o segmento começou a dar sinais de que passaria por um período muito difícil após o governo de Xi Jinping, preocupado com o alto nível de alavancagem das construtoras, passar a restringir o acesso ao crédito a essas empresas. Jinping sinalizou que os imóveis não deveriam ser alvos de especulação, como vinha ocorrendo, mas servir de moradia aos chineses.

Após o governo passar a dificultar o acesso ao crédito para as construtoras, algumas delas, sem dinheiro, interromperam as obras. Na esteira, parte dos compradores, que já tinha arcado com um bom valor do imóvel, começaram a boicotar o pagamento das prestações.

Lá, as companhias lançam seus projetos imobiliários, vendem parte das unidades recebendo entradas ao redor de 60% do valor, e financiam o restante, que vai sendo pago pelo futuro proprietário enquanto a obra é erguida. Quando a construção é concluída, o apartamento costuma estar quitado. Portanto, compradores já haviam desembolsado valores significativos quando obras foram paralisadas.

“Isso foi um sufoco para a autoridade chinesa. Essas pessoas que estavam protestando (os compradores) tiveram um alívio no pagamento das prestações. Mas a questão é que, hoje, os papéis das construtoras são negociados a preços muito baixos no mercado secundário, a preços quase de default”, diz o economista-chefe da gestora JGP, Fernando Rocha.

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Para tentar aliviar a crise, o governo tem atuado de modo discreto. O Banco Central deu crédito barato a bancos de desenvolvimento, que, por sua vez, repassaram à construtoras. O problema é que os consumidores não confiam mais nessas empresas e o setor não consegue mais vender como antes. Segundo o economista Livio Ribeiro, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/Ibre), tem havido um empoçamento de liquidez por falta de demanda. “Há uma diretriz para conceder crédito, mas ninguém quer pegar esse crédito”, diz.

Ribeiro destaca ainda que, como Xi Jinping quer desalavancar o setor imobiliário, a maior parte do crédito liberado pelo governo é para as incorporadoras concluírem obras, não para lançarem novos projetos. “Isso não gera demanda. Para tirar o setor do buraco, seria preciso gerar demanda por novas construções”, acrescenta.

A situação se torna mais grave porque o setor da construção é responsável por cerca de 25% do Produto Interno Bruto (PIB) chinês. Sua desaceleração, portanto, freia todo o crescimento econômico. De acordo com Rocha, da JGP, o PIB da construção pode cair de 5% a 8% em 2022.

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Assim, a crise do segmento, ao lado do lockdown de Xangai, está entre os principais fatores que fizeram o governo indicar que desistiu de perseguir sua meta de crescimento do PIB para 2022, que havia sido fixada em 5,5%. Hoje, o Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta que o PIB avançará 3,3% neste ano. Com exceção de 2020, quando a economia chinesa cresceu apenas 2,2% por causa da crise da pandemia, esse seria o número mais baixo desde, ao menos, 1980.

O Itaú Unibanco estima um crescimento de 3,2% para a China em 2022. A economista do banco Laura Pitta destaca que os dados de vendas no varejo têm surpreendido negativamente e que, portanto, o PIB pode ser mais baixo do que o projetado atualmente. “Acho que 3% seria o piso. Esse é um cenário diferente da China que a gente conhecia. Antigamente, ela ajudava a economia global, agora ela seria mais neutra”, avalia.

Laura lembra que a estrutura da economia chinesa é diferente da de quando o PIB crescia dois dígitos ao ano. Há dez anos, o governo vem tentando mudar a base da economia, que antes era focada em grandes investimentos em infraestrutura e exportações e começa, agora, a ser impulsionada pelo consumo interno. Isso significa que não há mais tanto espaço para crescer a taxas altas como as do passado. “A China está convergindo para um ritmo de crescimento mais próximo das economias desenvolvidas. É um processo longo de transformação, mas é difícil esperar que o país vai ser fonte de demanda de commodities daqui para frente”, acrescenta.

Para o mundo, talvez o grande entrave esteja no fato de a desaceleração chinesa ocorrer em um momento em que há risco de recessão nos Estados Unidos e na Europa. Das outras vezes em que isso ocorreu, como na crise financeira de 2008, a China serviu como um contrapeso, dado que continuou crescendo e demandando produtos de países como o Brasil. “Isso era muito importante para o mundo emergente. Dessa vez, é diferente”, acrescenta Ribeiro, do Ibre.

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Nos países emergentes, os setores ligados a commodities metálicas deverão sofrer mais. Isso porque o modelo adotado pelo governo chinês para desacelerar a economia prevê justamente esse freio em investimentos de infraestrutura e na construção civil. Por outro lado, a população de classes mais baixas na China, que está começando a ter um maior poder de compra, deve continuar expandindo a demanda por alimentos, o que pode favorecer a exportação brasileira de commodities agrícolas.

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