Na década de 1960, Valéry Giscard d’Estaing, então ministro das Finanças da França, criou a expressão “privilégio exorbitante” para se queixar dos benefícios dos Estados Unidos em ser o emissor da moeda de reserva internacional. Prevaleciam então os regimes de taxas fixas de câmbio, atreladas à cotação do ouro e controladas pelos bancos centrais. Estávamos em plena guerra fria e havia um acirrado debate ideológico sobre capitalismo e socialismo.
Mais de meio século depois, em um mundo de moeda fiduciária e mercados financeiros globalizados, onde a maior parte das transações internacionais é feita pelo setor privado e com predominância, pelo menos nas democracias, de regimes de livre flutuação cambial, o governo Lula volta a atacar o dólar com o mesmo furor ideológico daquela época.
O amplo uso do dólar não se deve a imposição legal ou a pressão política dos norte-americanos. Trata-se de uma moeda de elevada liquidez e isso decorre da escolha dos agentes econômicos, por confiarem na economia e nas instituições do país emissor.
Claro, o ideal é que o real tivesse ampla conversibilidade. E esse é o objetivo da Lei 14.286/21, o Novo Marco Cambial, que vem sendo gradualmente implantado pelo Banco Central (BC). Mas isso demanda tempo, pois necessita de maior estabilidade política, jurídica e macroeconômica.
A criação de uma moeda comum para transações internacionais na América do Sul não resolverá os problemas estruturais de cada país que afetam a volatilidade cambial e a não conversibilidade de suas moedas. Como didaticamente argumentou o presidente do BC, Roberto Campos, é como um ser que herda os genes bons e ruins de seus ancestrais.
Veja-se, por exemplo, o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR), instituído em 1982 nos países membros da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), que tem como signatários Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e República Dominicana.
O objetivo era possibilitar o comércio internacional e algumas transferências em moedas locais. O problema é que os bancos centrais assumiam riscos de crédito que nada têm a ver com suas funções. Em razão das inadimplências, principalmente da Venezuela, desde 2019 o BC não autoriza o registro de novas operações no CCR.
Já os acordos bilaterais firmados entre Brasil, Argentina e Uruguai, no âmbito do Sistema de Pagamentos em Moedas Locais (SML), em que os bancos centrais funcionam como intermediários, mas não assumem risco de crédito, são promissores, mas ainda alcançam pequena parte do comércio internacional entre esses países.
Não é necessário reinventar a roda. Os caminhos técnicos para maior integração comercial na América do Sul são conhecidos. Apenas precisam ser ampliados e fortalecidos com o cérebro, e não com o fígado.
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