Consumimos muitos bens de serviços. Dentre estes, a que temos direito enquanto cidadãos, estão os serviços públicos. Neles, além da saúde e a educação, estão a segurança nacional, prestada pelas forças armadas, e a segurança pública prestada pelas polícias militar e civil, ambas sob a égide da Constituição Federal. As queixas e as críticas quanto a estas últimas são conhecidas e infindáveis. A que pouco conhecemos e raramente nos queixamos e criticamos é a segurança nacional, ou seja, aquela encarregada, primordialmente, de nos proteger e ao nosso território, de eventuais inimigos externos. A invasão da Ucrânia está aí para nos lembrarmos dessa proteção. As últimas vezes que tivemos que domesticamente nos preocuparmos com isso ocorreu há mais de duzentos anos com a guerra do Paraguai e alguns movimentos separatistas, no mesmo período.
Entretanto, há sessenta anos ocorreu no Brasil um golpe de Estado perpetrado pelas forças armadas em total desrespeito a suas obrigações constitucionais: depôs-se um presidente livremente eleito pelo povo, de acordo com a Constituição vigente. Foram cassados vários parlamentares e colocado a frente do governo um marechal do exército, depois uma junta militar, depois outros generais ao longo de mais de 20 anos. Foram executados vários militantes pela democracia e desrespeitados os cânones básicos do aparelho judiciário em todas as suas instâncias.
O filme que há pouco assisti, "Ainda estou aqui", retrata isto através do drama da família Paiva: Rubens, Eunice e seus cinco filhos. Raramente saio triste de cinema ou teatro, mas esse filme nos faz relembra o terror e as injustiças cometidos no nosso país, naquele período. Militantes da democracia alvo de tortura, naqueles anos de chumbo, podem ser vistos em fotos de suas partidas para o exílio, graças ao sequestro dos embaixadores americano, alemão e suíço.
Uma em particular, Vera Silvia Magalhães, chama a atenção pois saiu do país em cadeira de rodas em razão das torturas que sofreu. Findo o exílio muitos deles continuaram a sua luta pela democracia participando do jogo eleitoral e se tornando servidores públicos ou de organizações não-governamentais. Em 1984, terminada essa usurpação do poder democrático, mesmo com os crimes cometidos, concedeu-se uma anistia que beneficiou principalmente aos militares, já que os militantes foram, de fato, vítimas.
Por uma ironia do destino esse mencionado filme foi lançado quando se descortinou toda a preparação para um novo golpe de Estado a ser perpetrado pelos vários participantes civis e militares do governo Bolsonaro. É assustador que se tenha arquitetado algo semelhante ao que se fez em 1964. Eu sempre imaginei que tal tentativa não seria levada a frente. O Brasil de hoje é uma democracia muito mais complexa do que aquela de 1964 e com instituições e servidores públicos exemplares e uma imprensa totalmente comprometida com a democracia. Um golpe, no contexto atual, exigiria um nível de arbitrariedades e crimes em padrão mais violento do que o que se fez na Argentina e no Chile, o que é evidentemente inimaginável. Mas eles pensavam ser possível e já preparavam o assassinato do candidato eleito para Presidente da República, do seu vice e do Ministro do STF, Alexandre de Moraes.
O que esperamos é que não se cometa o mesmo erro de 1984 concedendo anistia a esses criminosos. Seus julgamentos e punições devem ser efetivadas para que não se volte a pensar em acabar com nossa liberdade. Ou seja, queremos consumir/usufruir nossa Constituição com tudo a que temos direito.
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