RIO - O número de brasileiros endividados atingiu novo recorde em agosto, subindo a 79% do total de famílias do País, segundo pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), divulgada nesta segunda-feira, 5. Na retomada da crise econômica causada pela covid-19, o aumento do endividamento ajudou a impulsionar o consumo das famílias. Mas, em meio à inflação elevada, as finanças saíram do controle. As taxas de juros aumentaram e, em agosto, 29,6% das famílias brasileiras tinham contas com pagamento em atraso, também recorde na pesquisa, iniciada em 2010.
“Principalmente depois dos dados do último PIB (Produto Interno Bruto), sabemos que o crédito tem sido uma via relevante pra dar suporte ao consumo, tanto que o endividamento vem crescendo desde o ano passado”, disse Ízis Janote Ferreira, economista da CNC. Mas ela lembra que, como as famílias já estão com nível de endividamento alto, isso pode comprometer a capacidade de consumo, principalmente, no ano que vem. “Chega uma hora que esgota.”
Isso porque o aumento do endividamento, em si, não é um problema. Num ciclo virtuoso de emprego e renda, o crescimento poderia significar mais consumo, especialmente dos bens duráveis, como carros e eletrodomésticos, cujas vendas são, tradicionalmente, parceladas pelos consumidores. O preocupante, no cenário atual, é que o mercado de trabalho tem até gerado empregos, mas com salários menores, especialmente quando descontada a inflação elevada, e as vendas de bens duráveis não têm crescido.
Segundo Ferreira, a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) tem dado sinais, nos últimos meses, de que o aumento do endividamento tem sido utilizado para despesas correntes do dia a dia. Um desses sinais é a redução dos prazos. Em agosto de 2021, os consumidores entrevistados na Peic apontaram um prazo médio do comprometimento com endividamento de 7,3 meses. No mês passado, essa média ficou em 6,8 meses. Segundo Ferreira, a comparação dos dados do Banco Central (BC) sobre concessões de crédito no sistema bancário mostram crescimento maior nas modalidades de curto prazo do que nas de longo.
“Não é crédito pessoal ou para comprar bem. É crédito de prazo curto, no cartão e no carnê de loja, para suportar o consumo de itens mais básicos, não duráveis, do orçamento do dia a dia. Não é para trocar de carro nem para comprar eletrodoméstico”, afirmou Ferreira.
Consumo de serviços
Além disso, parte do aumento do endividamento, segundo a economista da CNC, tem a ver com a normalização do consumo dos serviços após o pior da pandemia ter ficado, de vez, para trás. Isso ocorreu apenas nos orçamentos das famílias mais ricas, que, geralmente, gastam mais com serviços, como bares, restaurantes e turismo. Depois de dois anos sem poder consumir normalmente esses serviços, as famílias mais ricas retomaram com força esses gastos no segundo trimestre - e ao pagar as contas no cartão de crédito, aumentaram o endividamento, pela ótica da pesquisa da CNC.
Daqui para a frente, o impulso ao consumo de curto prazo dado pelo crédito tenderá a perder força. Até agora, “os juros mais altos não parecem estar limitando esse endividamento”, disse Ferreira, mas as próximas dívidas ficarão mais caras.
Por outro lado, o nível recorde de 29,6% das famílias brasileiras com dívidas ou contas em atraso sinalizam para uma estratégia de “rotação” no pagamento das despesas familiares - num mês se atrasa o pagamento de uma conta de consumo, como eletricidade ou água, no próximo, se atrasa uma parcela de um crediário. Ou seja, mesmo que não seja uma situação explosiva de inadimplência, a dinâmica de aumento do endividamento e crescimento do consumo chegará a um limite.
Para Gilberto Braga, professor de finanças do Ibmec, a elevação do pagamento do Auxílio Brasil, programa que sucedeu o Bolsa Família, de R$ 400 por mês para R$ 600 por mês, deverá aliviar as finanças domésticas das famílias mais pobres até o fim deste ano. O movimento de esgotamento tenderá a ficar mais para 2023. “Vamos ter de esperar para ver como ficará o Auxílio Brasil no ano que vem. O mercado de trabalho tem tendência de melhora”, afirmou Braga.
Carnês e cartões próprios
O uso de carnês e cartões próprios de varejistas tem crescido como modalidade de crédito nos últimos meses, em detrimento de instrumentos puramente financeiros, mostra a Peic, da CNC. É mais uma opção para os consumidores fecharem as contas com o orçamento apertado, mas também requer atenção das famílias para evitar a desorganização das contas.
Em agosto, 19,4% das famílias endividadas recorreram a carnês e cartões de lojas do varejo, aumento de 0,5 ponto porcentual ante julho. O cartão de crédito segue como principal modalidade de endividamento, com 85,3% em agosto, mesma proporção de julho, mas 3,5 p.p. abaixo do registrado em abril, desde quando vem caindo.
Segundo Braga, do Ibmec, parte desse movimento é estrutural, e tem mais a ver com a estratégia dos varejistas do que com a demanda por parte das famílias. Diante dos juros altos, as empresas do varejo estão fugindo dos serviços de financeiras e têm aproveitado a diversificação dos serviços financeiros por parte de “fintechs” e bancos digitais para oferecer crédito e parcelamentos diretamente aos consumidores.
Para o consumidor, a retomada do crediário diretamente com os lojistas se tornou “mais uma alternativa de pedalar o orçamento”, disse Braga. “Virou mais uma fonte para ele tentar sobreviver no curto prazo”, completou o professor, ressaltando que essa fonte de crédito também tem limites, embora creia que um esgotamento deverá ficar para 2023.
No caso de Ana Félix, de 54 anos, o crédito foi a saída para lidar com as complicações da pandemia sobre sua vida financeira. Depois de ficar desempregada por conta da crise sanitária, hoje ela trabalha de domingo a domingo para pagar as contas de casa. De segunda a quinta-feira, dá expediente como vendedora no Centro do Rio, de sexta a domingo, trabalha como cuidadora de idosos.
“A pandemia atrapalhou muita coisa. Fiquei parada, ficamos em casa sem trabalhar, aí as contas vão se transformando em uma bola de neve”, relatou Félix. “Estou inadimplente. Minha prioridade é pagar conta de luz, água, telefone e cartão de crédito”, reconheceu.
Os pagamentos em atraso são crediários em lojas, feitos quando adquiriu roupas, sapatos e móveis. Depois de renegociação de dívidas, ela já conseguiu quitar as compras parceladas em atraso em duas lojas, mas ainda faltam três crediários pendentes em outras três redes varejistas.
“A gente vai tentando renegociar a dívida, vai pagando devagarzinho. Estou pagando por etapas”, contou. “Não tenho vida, é só trabalho. Mas não vou dizer que não compro mais, porque eu gosto de comprar”.
Na visão de Braga, do Ibmec, o aumento do endividamento não muda os cuidados que os consumidores devem ter na administração das finanças domésticas. É preciso controlar o orçamento e cortar gastos supérfluos.
O caso do vendedor Nailto Ferreira, de 52 anos, que também trabalha no Centro do Rio, mostra como, com organização, o endividamento pode ser usado para impulsionar o consumo. Em vez de pagar suas compras à vista, ele conta que consegue comprar passagens de ônibus e de avião com até 60% de desconto no cartão de crédito, e ainda usa aplicativos para ganhar créditos na modalidade “cashback”.
“Quando eu recebo o dinheiro, eu antecipo o pagamento das faturas, daí ainda ganho um desconto por isso”, ensinou Ferreira. “Já consegui comprar passagem de avião Rio-São Paulo por R$ 125.”
Para Braga, do Ibmec, a atenção para a organização financeira é importante, mas o aumento do endividamento não chega a ser uma “bomba-relógio” para o futuro. A tendência é que um esgotamento no crescimento do crédito reduza o impulso ao consumo, mas há incerteza sobre como isso se dará em 2023.
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