Tema que já parecia superado no cenário da aviação brasileira voltou à pauta regulatória com a recente discussão no Senado e na Câmara dos Deputados de Projeto de Lei de Conversão proveniente da Medida Provisória 1.089/2021 que, entre outros pontos, extingue a cobrança por bagagens despachadas.
Em 2017, as companhias aéreas foram autorizadas a cobrar pela bagagem despachada, mas, agora, em meio à forte disseminação de inflação de preços em toda a economia, nossos legisladores tentam impor uma suposta gratuidade dentro do serviço de transporte aéreo. A seguir apresentamos evidências sobre essa discussão no âmbito da literatura de economia da regulação.
O efeito da obrigatoriedade da “venda casada” é que as pessoas tenderiam a levar mais bagagem do que o estritamente necessário, aumentando o custo do voo – em consequência do maior consumo de combustível – e retirando espaço para transporte pago de mercadorias. O resultado esperado são passagens mais caras para todos os passageiros e um subsídio do consumidor que não usa o transporte de bagagem para aquele que usa.
Inicialmente, é bom ressaltar que, ao tentar intervir em algum setor, para corrigir falhas de mercado, a ação estatal pode ter efeitos contrários àqueles inicialmente desejados. Chamamos isso de “falhas de governo”, visto que intervenções governamentais incorretas podem gerar distorções maiores que os problemas os quais elas se propunham a resolver. Além de não ser possível identificar uma falha de mercado a ser corrigida, no caso da gratuidade do despacho de bagagem, com objetivo de diminuir os preços das passagens aéreas, o efeito contrário poderia funcionar da seguinte maneira: percebendo que o despacho da bagagem não gera pagamento adicional, as pessoas tendem a levar mais bagagem do que o necessário, aumentando o custo do voo (via maior consumo de combustível, por exemplo), o que pode resultar em passagens mais caras para todos os passageiros.
Podemos citar ao menos dois estudos recentes em que se buscou evidência empírica do efeito da cobrança em separado do despacho da bagagem sobre os preços: dissertações de mestrado de Bruno Resende (FGV-RJ) e de Elísio Freitas (IDP-DF), um dos autores deste artigo. Os trabalhos chegam a resultados parecidos. Utilizando métodos estatísticos, com dados de antes e depois do início da cobrança da tarifa para despachar bagagens pelas companhias aéreas (em 2017), os estudos apontaram redução entre R$ 15 e R$ 56 nas tarifas médias cobradas pelas companhias. Além disso, foi possível demonstrar que os consumidores responderam à cobrança da taxa de bagagem diminuindo em mais de um quilo a quantidade de bagagem despachada na comparação ao período anterior à cobrança.
No mesmo sentido, utilizando dados do Departamento de Transportes dos EUA em um modelo econométrico, Brueckner e seus coautores encontraram que, em média, o preço das passagens aéreas declinou 3% em decorrência da adoção da tarifa de franquia de bagagem. Tendo em vista que, na maior parte dos voos, esse valor é menor que a tarifa cobrada pelo despacho de bagagens (à época do estudo era de U$ 15 ou U$ 20), concluíram que, em média, o preço total da viagem para o consumidor que despacha bagagem é maior que o preço anterior à implementação da tarifa de franquia. Como esperado, ao se cobrar em separado, retira-se o subsídio cruzado que existia do passageiro que não leva bagagem para o passageiro que a transporta; cobrando-se o serviço de despacho de bagagem apenas de quem o utiliza, cada um paga por suas escolhas.
É digno de registro que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), por meio da Nota Técnica nº 11, de 2019, do Departamento de Estudos Econômicos, informou que a volta da franquia de bagagem afetaria negativamente os investimentos no mercado de transporte aéreo, uma vez que impactaria o modelo de negócios das empresas aéreas de baixo custo. A entrada desse tipo de empresa no mercado brasileiro teria o condão de incrementar a concorrência, com possíveis impactos favoráveis ao consumidor.
Embora possa se alegar que novas empresas de capital estrangeiro não ingressaram no mercado brasileiro após o fim da restrição a esse investidor (com a entrada em vigor da Lei 13.842, de junho de 2019), isso pode se justificar pelo período necessário para operações desse tipo, bem como pela forte “turbulência” que afetou o setor aéreo devido à pandemia de covid-19 no início de 2020.
Vale lembrar que, em 2019, ano anterior ao do começo da pandemia, os aeroportos brasileiros registraram 218 milhões de embarques e desembarques de passageiros. Apenas 15 anos antes, esse número não passava de 75 milhões; note-se, portanto, ter havido indubitável democratização do transporte aéreo nacional.
Esse processo decorreu de muitas melhorias regulatórias implementadas pela agência reguladora setorial, aliadas a políticas públicas de várias gestões no âmbito do governo federal, a exemplo do programa de concessões da infraestrutura aeroportuária, que permitiu vultosos investimentos carreados pela iniciativa privada e a entrada no País de importantes operadores internacionais.
Essa evolução levou o Brasil a figurar em posição privilegiada frente aos demais países no que se refere ao ambiente de negócios no setor aéreo. O pagamento em separado pelo despacho de bagagens foi mecanismo regulatório que contribuiu para maior eficiência no transporte aéreo e, assim, para o processo de democratização do setor. O retorno do despacho gratuito de bagagens representa retrocesso regulatório, que, certamente, não beneficiará os consumidores brasileiros.
* Guilherme Mendes Resende é economista-chefe do Cade.
* Elísio Freitas é advogado especialista em regulação e em TCU.
* Thiago Caldeira é consultor e sócio da Deltainfra Consultoria.
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