Ao contrário do que se poderia imaginar, os vários movimentos no Supremo Tribunal Federal (STF) em torno de rediscussões sobre provas e penas ligadas a empresas criminalizadas na Lava Jato são encaradas com reserva pelas construtoras. Com dificuldades financeiras, sem acesso a crédito e sem grandes obras no País há anos, elas tentam pleitear, desde o ano passado, a redução nas parcelas dos acordos de leniência junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), ao Ministério Público Federal (MPF), à Advocacia Geral da União (AGU), à Controladoria Geral da União (CGU) e ao Conselho Administrativo de Direito Econômico (Cade). Porém, segundo executivos das grandes empreiteiras, cada vez que o tema de cancelamento de provas volta à tona, todas as discussões que estariam sendo baseadas em critérios técnicos travam.
“Não existe intenção de negar os atos praticados ou a aplicação de multa, mas tentar buscar o uso de critérios mais adequados de reajuste dos valores e cálculos das parcelas de acordo com o fluxo de receitas previstos que temos”, diz uma fonte próxima às empreiteiras. “Nossa discussão baseia-se numa linha técnica. Entrar num confronto e na discussão política é arremessar o tabuleiro para cima, no meio de um jogo de xadrez: a gente quer é se ver livre desse negócio.”
A diretora executiva da prática de Riscos e Investigações da FTI Consulting, Juliana Palma, acredita que a revisão das metodologias e critérios de cálculo das multas em acordos de leniência para empresas seja positiva e diz que já há discussões entre as agências para evoluir nesse sentido, assim como nas responsabilidades de aplicação de multa, sanções e investigações. A CGU e o Cade já mantêm conversas de cooperação por entenderem que os acordos podem ser mais eficientes.
No Brasil, não há autoridade específica para aplicar a Lei Anticorrupção
Na Lava Jato, Palma participou do trabalho das equipes de monitoramento das companhias, reportando ao Departamento de Justiça (DoJ) dos Estados Unidos. “Comparativamente, havia maior clareza nos EUA para esse tipo de acordo, enquanto no Brasil havia discussões em torno da responsabilidade de investigar, punir e ter acesso aos documentos”, afirma. De acordo com ela, enquanto nos Estados Unidos, as sanções do Foreing Corrupt Practices Act (FCPA), a lei anticorrupção norte-americana, são aplicadas por dois órgãos, pelo DoJ e pela SEC (Securities and Exchange Commission, equivalente à Comissão de Valores Mobiliários nos EUA), a Lei Anticorrupção do Brasil é multiagências. Sendo assim, não há uma autoridade específica que pode aplicar a lei, trazendo maior instabilidade jurídica. A diretora executiva da FTI Consulting acredita que convergir nesse sentido e aumentar a clareza nas regras de aplicação da lei seria positivo para o País.
Segundo interlocutores ouvidos em condição de anonimato, há diferentes linhas para essas negociações individuais que as construtoras mantêm de revisão dos acordos feitos na Lava Jato. Uma delas defende que houve cobranças duplicadas em várias instâncias, já que no Brasil não havia um órgão que centralizasse as negociações de acordos de leniência. Assim, as empreiteiras teriam sido penalizadas financeiramente várias vezes pelo mesmo crime - e buscam reduzir os valores a serem pagos, por conta disso.
Segundo um entrevistado que também preferiu não se identificar, o valor dos acordos das construtoras aumentou de 40% a 300%, conforme outras entidades, além das que fizeram os acordos originais, assumiram ter responsabilidade em aplicar penalizações. Assim, mesmo após assinar acordos com o MPF ou a CGU, as empreiteiras tiveram de acertar contas com o Cade por formação de cartel ou com os Ministérios Públicos Estaduais, na visão deles pagando mais de uma vez pelo mesmo crime.
Metodologia de cálculo de multas é questionada
Outra linha de negociação com as autoridades envolve a falta de uma metodologia clara para o cálculo das multas. De acordo com uma fonte, a única regra estabelecida à época era que os primeiros delatores pagariam menos e, os da sequência, teriam sempre de pagar mais, mesmo que faturassem menos ou tivessem capacidade de geração de caixa menor. Ou tivessem cometido menos crimes.
O assessor financeiro de uma das empresas da Lava Jato afirma que seu cliente pediu que fosse até Curitiba, onde estava centralizada a força-tarefa da Lava Jato, explicar o cálculo do fluxo futuro de receita trazido a valor presente a fim de obter um acordo mais adequado à sua realidade financeira.
Há ainda a visão por parte das construtoras de que a cobrança pelos danos foi muito maior do que o prejuízo causado nos delitos, de maneira geral. O problema não é o tamanho da penalização, diz uma fonte, mas a falta de parâmetro de maneira geral. Segundo ela, a única instituição que tinha regras claras à época era a Receita Federal, que cobrava 150% em fraudes fiscais. Nas outras instâncias, a penalização acontecia sem regras conhecidas.
Empresas querem que multa seja proporcional à participação em consórcio
Uma quarta argumentação diz respeito ao fato de que, num consórcio de empreiteiras que cometeu um crime em determinada obra, todas pagaram pelos mesmos danos. Para os executivos, o correto seria o desembolso proporcional à participação de cada empresa no consórcio. Além disso, afirmam, havia a exigência de devolução de todo o lucro do conseguido no projeto envolvido na corrupção. Para os entrevistados, a cobrança de multa simultaneamente à demanda do retorno de todos os ganhos causa dupla penalidade, o que ensejaria discussão.
Finalmente, há ainda o fato de que, como várias construtoras entraram com pedidos de recuperação judicial - e seus credores tiveram de dar desconto em suas dívidas (o chamado haircut, no jargão de mercado) -, caberia também ao poder público agir nesse sentido.
Os acordos de leniência, que começaram em R$ 700 milhões junto ao Ministério Público, no caso da Camargo Corrêa, foram a R$ 1,4 bilhão somados ao firmado com a CGU, de acordo com informações públicas. A Andrade Gutierrez saiu de R$ 1 bilhão e teria ficado em R$ 3 bilhões, conforme fontes. E a Odebrecht partiu de R$ 4 bilhões e teria terminado em R$ 15 bilhões, porque teve também acordos no exterior, também segundo fontes.
Receitas das empreiteiras caíram
Com as grandes construções paradas desde 2015 e a pandemia, as receitas das companhias foram na direção diametralmente oposta. O Grupo Odebrecht (atual Novonor) faturava R$ 132 bilhões à época dos acordos, em 2015, com Braskem respondendo por 40,5%. Em 2022, a participação da Braskem no faturamento da Novonor, de R$ 120 bilhões, pulou para 92%.
A Andrade Gutierrez foi de R$ 12 bilhões para R$ 3 bilhões no período. Já no caso da Camargo Corrêa, o grupo ficou resumido a uma participação de 15% na CCR, ao controle da Intercement e a sua construtora, onde as receitas caíram de cerca de R$ 5 bilhões anuais antes da Lava Jato, para aproximadamente R$ 1 bilhão.
A UTC praticamente desapareceu e a OAS é ameaçada por um pedido de falência. As empresas tentam levar adiante quatro pleitos junto aos órgãos técnicos: a revisão das parcelas, o alongamento de prazos, o pagamento com prejuízo fiscal ou precatórios e a redução no valor das multas.
Empresas estão de olho no PAC
As construtoras, que dizem estar alinhadas às regras de compliance da Lei Anticorrupção, também olham para o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), na expectativa de serem eventualmente contratadas. “Quanto mais rápido rever os acordos, baixando valor e esticando o prazo, melhor ficam os balanços para mostrar saúde financeira necessária nesses contratos”, diz um dos entrevistados. Para ele, houve um aprendizado e as boas regras de governança e controles são exigidas em cada um dos contratos que prestam, seja em grandes obras da iniciativa privada ou no exterior, onde continuam tendo contratos. “Quem passou por aquilo não quer repetir porque foi uma dor que quase matou as empresas”, diz. “Ninguém vai correr o risco de novo.”
Procuradas, Novonor, Andrade Gutierrez, OAS e UTC não comentaram. A Camargo Corrêa informou que, em virtude de suas obrigações de confidencialidade, não se manifestará sobre dados específicos dos acordos firmados. Acrescentou que “nos últimos anos, a empresa, assim como todo o setor de construção, sofreu os efeitos deletérios de uma combinação de pandemia, alta significativa dos custos de insumos e disparada dos juros que incidem sobre os valores acordados. Sem prejuízo disso, a empresa vem mantendo contato com a CGU, AGU e MPF com vistas à manutenção do cumprimento do acordo.”
A AGU informou que o assunto é tratado pela CGU, que, por sua vez, confirmou que mantém conversas de cooperação com o Cade. O Cade informou que os acordos de leniência por ele firmados decorrem de infração de formação de cartel somente, não se destinando a apurar outros ilícitos como corrupção e envolvimento de agentes públicos e políticos em ilícitos. O Cade disse ainda que o beneficiário de um acordo de leniência é quem procura a autoridade, denuncia o ilícito e compromete-se a cooperar com as investigações, ocasião em que traz os elementos de prova que fundamentam seu relato. Em contrapartida a essa colaboração, a lei confere a extinção ou redução da punibilidade administrativa e criminal referente ao ilícito de cartel, acrescentou o Cade.
Esta nota foi publicada no Broadcast no dia 26/09/23, às 16h03.
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