Seis anos após o início das investigações que culminaram na falência da corretora Gradual, o Ministério Público Federal (MPF) apresentou novos elementos que indicam um amplo esquema de desvio de fundos de pensões municipais por meio de operações suspeitas no mercado de capitais, com o uso de títulos podres e empresas de fachada.
Uma nova denúncia apresentada à 6ª Vara Criminal da Justiça Federal em São Paulo acusa a cúpula da gestora de liderar uma organização criminosa que teria funcionado “de forma praticamente empresarial”, num arranjo criado para “o cometimento de crimes e obtenção de vantagem econômica”, de acordo com a acusação.
Segundo o MPF, as operações suspeitas de fraude teriam causado prejuízos milionários a dezenas de fundos de pensões, com impacto a milhares de servidores públicos. Procurados, os líderes da Gradual disseram que ainda não tiveram acesso à denúncia.
Fundos viabilizam aposentadorias de funcionários públicos
Em todo Brasil, mais de oito milhões de funcionários de prefeituras e administrações estaduais têm seus recursos voltados para aposentadorias geridos por fundos de pensão próprios, ou RPPS. Para rentabilizar os saldos que pagarão os benefícios no futuro, os fundos fazem investimentos de todos os tipos no mercado e movimentam bilhões. Sobre esse universo é que se dá a suspeita apresentada pelos procuradores.
Comandada pela economista Fernanda Braga de Lima, a Gradual chegou a administrar R$ 7 bilhões, de 60 mil clientes. A corretora teve a falência decretada em 2019, após virar alvo das autoridades.
O envolvimento com operações suspeitas teria ganhado força a partir de problemas financeiros enfrentados pela corretora, indicam as investigações. Para levantar recursos capazes de enquadrar a empresa nos índices exigidos pelo Banco Central, Lima e seu marido, Gabriel de Freitas, teriam ajudado a coordenar a rede agora denunciada pelo MPF.
Casal já havia sido alvo de processo
Ambos já haviam sido denunciados por suspeitas de gestão fraudulenta e desvio de recursos, entre outras práticas, e chegaram a ser presos no curso das investigações. Além disso, também sofreram sanções da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e do Banco Central.
O caso começou a ser apurado a partir de uma transação envolvendo um título (debênture) de uma empresa de tecnologia (ITS@) ligada à Gradual, a partir de uma ordem de compra feita à revelia de outra gestora, que passou a então a contar com o título na carteira de um dos fundos sem conhecimento. Esse fundo tinha a Gradual como administradora.
A operação Papel Fantasma, deflagrada pela Polícia Federal em 2017 para investigar a transação, evoluiu para uma segunda operação (Encilhamento) e se desdobrou numa série de outras ações.
Gestores teriam agido em conluio com dirigentes de instituições
De acordo com a nova denúncia do MPF, de 2012 a 2017, administradores e gestores de fundos de investimentos teriam agido em conluio com consultores e dirigentes dos fundos de pensão municipais.
“Desviaram recursos públicos desses institutos de previdência por meio do investimento em fundos que continham em suas carteiras papéis sem lastro (podres), emitidos por empresas de fachada vinculadas às administradoras e gestoras que as adquiriram”, afirma a denúncia.
No mais emblemático deles, da empresa de tecnologia ITS@, cerca de R$ 20 milhões teriam sido revertidos para a Gradual, aponta a investigação. Segundo a denúncia, a empresa, ligada à própria corretora e com patrimônio líquido de apenas R$ 2 mil em 2015, emitiu títulos milionários que foram negociados por meio da rede de gestores e fundos de investimento, com recursos originados nos fundos de pensão municipais.
Procuradoria divide o suposto esquema em dois núcleos
A denúncia da Procuradoria fala em uma rede de organizações criminosas e divide o esquema em dois núcleos: da Gradual e da consultoria Di Matteo, do empresário Renato De Matteo, preso na Itália, em 2019. Em entrevistas recentes, De Matteo sustentou que houve erro processual no seu caso e alegou sofrer perseguição do Ministério Público e da Polícia Federal.
Fernanda Braga de Lima e Gabriel de Freitas são apontados como a liderança do núcleo Gradual, junto a outros três grupos (tático-operacional, de gestores do mercado e operadores junto aos fundos de pensão).
Uma das integrantes é antiga conhecida da Polícia Federal. Segundo a acusação, Meire Bonfim Poza atuou no aconselhamento contábil à corretora para disfarçar as operações suspeitas. Ligada ao doleiro Alberto Yousseff, Poza ganhou destaque na Operação Lava Jato, como uma das principais testemunhas do caso.
Acusação inclui velha conhecida
Uma anotação à mão apreendida com a contadora mostra uma ilustração (abaixo) com o caminho de operações feitas para levantar recursos que teriam sido usados para cobrir prejuízos da Gradual, segundo aponta a acusação.
De acordo com a denúncia, Poza teria ajudado a cúpula da Gradual a preparar uma estrutura financeira que envolvia empresas brasileiras e offshores para “transitar recursos não rastreáveis”. Ela é descrita como responsável pelo setor de contabilidade da corretora e vista como peça-chave no caso.
Os procuradores concluíram que a contadora já sabia, antes de se aliar à Gradual, de um esquema que permitia que fundos de pensão aplicassem recursos em fundos “podres” com pagamentos de comissões ao captador da aplicação. “Em relatório financeiro da PF, restou demonstrado que os conhecimentos contábeis de Meire foram de grande valia para a estruturação das operações fraudulentas da organização”, afirma a acusação.
Ação alcança 12 pessoas
A denúncia de organização criminosa alcança 12 pessoas, entre as quais estão também outro nome conhecido da Justiça: Arthur Mário Pinheiro Machado, preso numa das operações da Lava Jato por envolvimento com transações suspeitas junto aos fundos de pensão de empresas estatais.
Machado era um dos principais nomes por trás da ATG. A empresa se vendia como nova Bolsa brasileira, potencial concorrente da B3, e levantou dinheiro nos fundos de pensão. No ano passado, Machado se candidatou a deputado federal por São Paulo pelo partido Republicanos e obteve 6.600 votos.
Além da defesa de Fernanda Braga de Lima e de Gabriel de Freitas, que disse ainda não ter tido acesso à denúncia, também foram procurados Meire Poza e Renato de Matteo, que não responderam até a publicação deste texto. A reportagem não conseguiu contato com Arthur Mário Pinheiro Machado.
Este texto foi publicado no Broadcast no dia 20/11/23, às 17h00
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