Logo depois de Bangladesh conquistar sua independência do Paquistão, em 1971, numa guerra sangrenta que levou a vida de cerca de três milhões de pessoas, segundo dados oficiais, Henry Kissinger (1923-2023), então Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, referiu-se à nova nação como um “caso perdido”.
Um dos países mais pobres do mundo na época, com cerca de 80% da população vivendo na miséria, de acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), Bangladesh parecia condenado ao subdesenvolvimento. Mas, meio século depois de sua criação, Bangladesh deixou para trás a imagem de país com pobreza endêmica, assolado pela fome, e se tornou um dos exemplos mais notáveis e inesperados de redução da miséria nas últimas décadas em todo o mundo.
Entre 1990 e 2022, Bangladesh tirou quase 30 milhões de pessoas da pobreza absoluta, conforme os dados do Banco Mundial. O número de pessoas vivendo na miséria, com menos de US$ 2,15 por dia, em valores de 2017 ajustados pelo custo de vida do país, caiu de 43,8 milhões para 16,4 milhões, num período em que a população cresceu 60%, para 171,2 milhões.
Em termos relativos, o contingente vivendo na pobreza extrema também teve uma queda significativa, de 45,8% para 9,6% da população, colocando Bangladesh à frente da Índia, onde a taxa, segundo o Banco Mundial, alcançava 11,9% em 2022 – a do Brasil, em 2021 (último dado disponível), era de 5,8% .
“Os esforços de Bangladesh para reduzir a pobreza dariam um livro”, disse Jim Yong Kim, ex-presidente do Banco Mundial (2012-2019), durante visita ao país quando ainda estava no comando da instituição. “Bangladesh é um exemplo de quão rápido um país pode emergir das profundezas da miséria.”
Esta reportagem faz parte da série “Os caminhos da prosperidade” sobre a diminuição da miséria na Ásia, cuja contribuição para a melhoria da qualidade de vida global nas últimas décadas foi grandiosa. Lançada na semana passada pelo Estadão, com a publicação de uma reportagem mostrando que os avanços alcançados pela região vão além de China e Índia, a série aborda os casos de diferentes países que se destacaram neste quesito, como Bangladesh agora, para entender melhor o que está por trás do sucesso de cada um deles no enfrentamento da pobreza extrema.
É certo que, de 1990 a 2022, a desigualdade teve um ligeiro aumento em Bangladesh. Além disso, quando se leva em conta uma renda um pouco maior, de US$ 3,65 por dia ajustada pelo poder de compra, a fatia da população enquadrada na categoria, considerada como de pobreza moderada, chega a 40%, índice que salta para 83% quando a renda considerada é de US$ 6,85 por dia. Isso revela os desafios que o país ainda tem pela frente, mas não ofusca o resultado extraordinário obtido no combate à miséria desde a sua independência.
Pobreza multidimensional
Bangladesh conseguiu avançar também em vários aspectos do desenvolvimento humano, como saúde, educação e equidade de gênero, que fazem parte da chamada “pobreza multidimensional” – um conceito que considera a miséria além da questão monetária. A taxa de mortalidade de crianças com até cinco anos de idade, por exemplo, que era de 146 por mil nascimentos em 1990, caiu mais de 80%, para 27,3 em 2021, de acordo com o Banco Mundial. A expectativa de vida passou de 58 anos para 72,4 anos no mesmo período. A vacinação de crianças de 12 a 23 meses contra sarampo, que alcançava 65% do grupo em 1990, agora atinge 97%, também conforme o Banco Mundial.
Ao mesmo tempo, as matrículas no ensino fundamental subiram de 78,3% para 117,7% da população pertencente à faixa etária formalmente vinculada ao ciclo - o que indica que um grupo com idade mais avançada está tentando recuperar o tempo perdido fora da escola. No ensino médio, as matrículas atingem níveis mais baixos, mas também aumentaram, de 20,5% para 71,8% da população com idade correspondente a essa etapa.
Com uma população majoritariamente muçulmana, Bangladesh apresenta uma história peculiar de “empoderamento” feminino. Segundo os números oficiais, as mulheres têm um nível educacional ligeiramente mais alto do que os homens. As matrículas de mulheres no ensino secundário, por exemplo, passaram de 6,5% em 1977 para 72,2%, quase um ponto percentual a mais do que o índice dos homens. No mundo do trabalho, a participação feminina é inferior à masculina, mas cresceu de apenas 4% do total em 1971, na época da independência, para 33% em 2022.
Oitavo país mais populoso do mundo, localizado numa extensa planície e sujeito a ciclones violentos e cheias dos grandes rios que atravessam seu território e desaguam na Baía de Bengala, Bangladesh também desenvolveu um sistema de alertas e uma rede de abrigos que ajuda a proteger a população dos desastres naturais, melhorando a qualidade de vida na região.
Tudo isso se deve, principalmente, ao crescimento econômico do país nas últimas décadas. Com um crescimento em ritmo chinês, de 5,6% ao ano, em média, entre 1990 e 2022, Bangladesh foi um dos países que mais cresceram no período. No acumulado de 1990 a 2022, o PIB cresceu quase 15 vezes, de US$ 31,6 bilhões para US$ 460,2 bilhões, alçando Bangladesh ao posto de 41.ª maior economia global. Mesmo em tempos de turbulências generalizadas, como na crise de 2008 no mercado americano de hipotecas, que reverberou pelo mundo, e na pandemia, a economia do país teve um desempenho bem acima da média mundial.
Com o crescimento acelerado, o PIB per capita chegou a US$ 2,7 mil em 2022, nove vezes mais do que em 1990 e 21 vezes mais do que há 50 anos, quando era de apenas US$ 128 (R$ 640) em valores atualizados. Nos valores ajustados pelo poder de compra, o PIB per capita cresceu 7,4 vezes desde 1990, para US$ 7,4 mil, saltando das últimas posições do ranking mundial para o 126.º lugar entre 189 países, conforme os números do FMI e do Banco Mundial. Em 2015, graças a essa performance, Bangladesh deixou a lista dos países menos desenvolvidos para integrar o grupo de renda média baixa (veja os mapas).
O crescimento do país teve como grande motor a indústria de vestuário para exportação, introduzida no país nos anos 1980 pelo grupo coreano Daewoo e impulsionada pelo governo, ao reduzir tarifas de importações feitas pelo setor. Hoje, Bangladesh se tornou o segundo maior exportador de roupas prontas do mundo, como agasalhos, camisetas, camisas e calças feitos principalmente de algodão, atrás apenas da China.
Principal empregador do país, com 4,5 milhões de pessoas, sendo a maior parte de mulheres, a indústria de vestuário em Bangladesh prosperou como uma alternativa à China, quando os custos do trabalho lá começaram a subir. Hoje, o setor responde por cerca de 80% das exportações do país, que quase dobraram nos últimos trinta anos, de 5,9% do PIB para 10,7% do PIB.
Acusada de oferecer condições sub-humanas de trabalho, a indústria de vestuário de Bangladesh se viu forçada pelas grandes marcas internacionais a melhorar o ambiente para os trabalhadores e a passar por uma grande transformação em suas instalações depois que o desabamento do Rana Plaza, um edifício de nove andares que abrigava confecções em Daca, provocou a morte de 1.130 trabalhadores, em 2013.
O sistema revolucionário de microcrédito com juros baixos para os mais vulneráveis, criado pelo prêmio Nobel da Paz de 2006, Muhammad Yunus, fundador do Grameen Bank e conhecido como “o banqueiro dos pobres”, também deu uma contribuição considerável para reduzir a miséria e impulsionar o crescimento de Bangladesh.
Voltado principalmente para mulheres da zona rural, que não conseguiam empréstimos nos bancos tradicionais, para elas poderem investir em ferramentas de trabalho e aumentar seus próprios ganhos e os de suas famílias, o sistema criado por Yunus, hoje perseguido pelo governo sob acusações pouco consistentes de corrupção, apesar de ser respeitadíssimo pelo mundo afora, ajudou a aumentar a produtividade dos mais pobres em Bangladesh.
Pela falta de recursos nos anos que se seguiram à independência, as ONGs ocuparam um espaço inédito no país, realizando serviços que o governo não conseguia entregar e dando sua contribuição para a melhoria da qualidade de vida da população, especialmente os mais vulneráveis. A Brac (Comitê de Bangladesh para o Avanço Rural), fundada em 1972 e uma das maiores e mais ativas ONGs de Bangladesh, concentrou sua atuação na saúde da mulher e infantil e na área de educação, entrando depois também na área de microfinanças.
Outra ONG, segundo a revista britânica The Economist, passou a oferecer dinheiro para o pessoal do campo poder pegar um ônibus e migrar para a cidade, onde havia emprego, com bons resultados para quem aceitou a empreitada. A iniciativa, de acordo com a publicação, baseou-se numa pesquisa feita pelo economista Mushfiq Mobarak, professor da Universidade Yale, nos Estados Unidos, que revelou o ‘efeito cascata’ que isso promove para as famílias dos trabalhadores, além de beneficiar quem prefere ficar no campo, com a redução da mão de obra disponível. Só em 2017, segundo a Economist, 140 mil pessoas ajudadas pela ONG se mudaram para a cidade.
“Em Bangladesh, o Estado cedeu espaço voluntariamente para o setor não governamental oferecer serviços à população”, afirma o economista indiano Arvind Subramanian, ex-conselheiro econômico sênior do governo da Índia (2014-2018) e hoje membro sênior do Instituto Peterson para Economia Internacional, com sede em Washington, nos Estados Unidos, num artigo publicado em 2021. “Apesar da grande presença das ONGs, os líderes políticos de Bangladesh não veem suas atividades como uma usurpação da autoridade do Estado.”
Também fez diferença na diminuição da pobreza e na melhoria da qualidade de vida da população a ajuda internacional polpuda, de cerca de US$ 39,5 bilhões, recebida por Bangladesh do Banco Mundial desde 1972, por meio da Associação de Desenvolvimento Internacional (IDA, em inglês), braço de crédito da instituição para os países mais pobres, aplicados em 271 projetos, 57 dos quais ainda estão em andamento.
Em 2022, os expatriados enviaram para Bangladesh US$ 21,5 bilhões, fazendo a economia girar
Por fim, é preciso colocar na conta as remessas feitas pelos expatriados de Bangladesh espalhados pelo mundo, em especial nos países produtores de petróleo, estimados em mais de 10 milhões. Apenas em 2022, eles enviaram US$ 21,5 bilhões (cerca de 5% do PIB) para o país, conforme dados do Banco Mundial, ajudando suas famílias e fazendo a roda da economia girar.
Desde a pandemia, no entanto, o “milagre” econômico de Bangladesh está em xeque, levantando questionamentos sobre um eventual retrocesso nos avanços alcançados nas últimas décadas. Ainda que tenha sofrido menos, crescendo 3,5% em 2020, quando a maioria dos países chafurdou na recessão, Bangladesh também acabou pagando um preço salgado, agravado pelas guerras na Ucrânia e mais recentemente no Oriente Médio.
Por ora, o crescimento ainda se mantém na média das últimas décadas. Mas, como em todo o mundo, o custo de vida aumentou, com a alta dos preços do petróleo e do gás, usados em larga escala para geração de energia elétrica no país, e dos alimentos, apresentando novos desafios ao país. A inflação atingiu os maiores patamares em dez anos, prejudicando principalmente os mais pobres, ao ultrapassar a casa dos 9% ao ano.
Para tentar conter o estrago, o governo está vendendo arroz e outros produtos agrícolas com preços subsidiados por meio de comerciantes credenciados, gerando grandes filas nas portas dos estabelecimentos. Apesar da alta da inflação, houve também um tabelamento dos juros nos empréstimos por 12 meses, o que está causando uma tremenda distorção no mercado de crédito. As taxas de juros reais estão negativas e, de acordo com o Banco Mundial, a confiança dos depositantes no sistema está baixa.
Em outra frente, a indústria de vestuário, quase totalmente dependente de exportações, sofreu muito com a pandemia, deixando um saldo de mais de um milhão de desempregados. Até as remessas dos expatriados diminuíram, como os investimentos estrangeiros. A queda nos ingressos de moeda forte e o aumento dos gastos com importações agravaram o déficit nas contas externas de Bangladesh, complicando um pouco mais as compras do exterior.
O aumento das incertezas levou o governo a negociar um empréstimo de R$ 4,7 bilhões com o FMI, liberado no início do ano passado, para reforçar as reservar cambiais do país. Conforme o Banco Central de Bangladesh, elas caíram de US$ 43,2 bilhões em 2021 para US$ 19 bilhões em novembro e fecharam o ano em US$ 21 bilhões. Bangladesh foi o terceiro país da Ásia Meridional a buscar a ajuda do Fundo, depois de Sri Lanka e do Paquistão, nos últimos tempos. Em meados de 2023, a Moody’s, uma das principais agências internacionais de classificação de risco, reduziu a nota de Bangladesh para B1, quatro degraus abaixo do “grau de investimento” e perto da categoria de “investimento especulativo”.
Com a luz amarela no horizonte, o governo ampliou as exigências para importações, dificultando o ingresso de matérias-primas necessárias aos exportadores. O Banco Central também passou a exigir autorização prévia para qualquer carta de crédito acima de US$ 3 milhões, afetando ainda mais o comércio internacional do país.
Com o encolhimento das reservas cambiais e o aumento dos preços do petróleo e do gás, o governo de Bangladesh reduziu o horário de trabalho para economizar energia
O governo também mexeu no câmbio, criando uma taxa diferenciada para importações e exportações, para tentar reequilibrar as contas externas, o que acabou levando boa parte das operações em moeda forte para o mercado paralelo. Mesmo os expatriados passaram a usar canais alternativos para fazer suas remessas, agravando o problema.
Com o encolhimento das reservas cambiais e o aumento dos preços do petróleo e do gás, o governo reduziu o horário de trabalho, para economizar energia, e estaria também atrasando pagamentos aos fornecedores internacionais. Além disso reduziu o funcionamento das usinas a diesel que respondem por 6% da geração de energia elétrica do país.
‘Papagaio’
Embora o atual governo, da primeira-ministra Sheikh Hasina, de 76 anos, que acabou de conquistar seu quarto mandato consecutivo, tenha praticamente viabilizado o acesso à energia elétrica para toda a população, os apagões voltaram a ocorrer, com duração de até dez horas, inclusive na capital Daca.
À complicação das contas externas, com seus efeitos colaterais, soma-se o rombo estrondoso nas contas públicas, de cerca de 5% do PIB, mais que o dobro do brasileiro em 2023, que foi um ano de gastança ilimitada que engordou a dívida pública do País. Com a liberação do “papagaio” para Bangladesh, o FMI, como sempre, está exigindo contrapartidas, como a redução do déficit primário, que se multiplicou com a busca do crescimento a qualquer custo e a realização de grandes projetos de infraestrutura, como a ponte sobre o rio Padma, de 6 quilômetros de extensão, no sul do país, que foi financiada pela China, e a usina nuclear financiada pela Rússia, que está paralisada em razão das restrições impostas pelo Ocidente às transações com o país de Vladimir Putin.
Neste cenário sinistro, a continuidade na redução da miséria, que ainda aflige cerca de 16 milhões de pessoas, apesar do grande avanço realizado nos últimos trinta anos, pode ficar comprometida. Se Bangladesh conseguir preservar suas conquistas nesse campo em meio às dificuldades, já será uma vitória e tanto.
Agora, é provável que o que ajudou país a chegar até onde chegou não seja suficiente para levá-lo adiante. Para garantir um novo período de crescimento acelerado, segundo analistas internacionais, Bangladesh terá de superar não apenas os obstáculos do momento, mas encontrar soluções para os problemas estruturais existentes na economia, como a alta dependência da indústria de vestuário, a falta de liquidez do sistema financeiro, minado por mais de US$ 10 bilhões de créditos podres concedidos a aliados do governo, e a corrupção que marca as relações dos setores público e privado.
“Muito pouco do crescimento de Bangladesh veio do aumento da produtividade – menos de 1% ao ano desde 2000″, afirma Shahid Yusuf, economista-chefe da Diálogos para o Crescimento, uma organização ligada à faculdade de administração da Universidade George Washington, nos Estados Unidos, em artigo publicado no site do Centro para o Desenvolvimento Global, um centro de estudos americano. “O problema é que o aumento de produtividade é o principal responsável pelo crescimento de longo prazo da renda de todos os países.”
A grande questão é como turbinar a produtividade num país cuja economia ainda continua relativamente fechada, com barreiras tarifárias acima da média Ásia Meridional e que não é membro de nenhum pacto de comércio externo, no qual predomina um capitalismo de compadrio, como os que marcaram as gestões anteriores do PT no Brasil, em que quase tudo tem de passar pelo partido da primeira ministra Sheikh Hasina, o Liga Awami – acesso a empregos, licenças empresariais, contratos governamentais, empréstimos no sistema financeiro.
Ceticismo
No Doing Business 2020, o último levantamento da série realizada pelo Banco Mundial para avaliar os melhores (e os piores) locais para fazer negócios, Bangladesh aparece na 168.ª posição, entre 190 países, pelos gargalos na infraestrutura e burocracia excessiva, entre outros pontos. O Brasil que é o Brasil, onde a vida é duríssima para os empreendedores, ficou em 124.º lugar. Entre os países da Ásia, Bangladesh está à frente apenas do Afeganistão (173.º) e Timor-Leste (181.º), além da Coreia do Norte, não avaliada pela instituição.
Talvez, por isso mesmo, nenhuma grande indústria global tenha investido até agora em Bangladesh para viabilizar a almejada diversificação da economia, ao contrário de outros países asiáticos que ganharam tração nos últimos anos, como o Vietnã, que atraiu empresas japonesas e coreanas de eletroeletrônicos, e a Tailândia, transformada na Detroit do sudeste asiático pelos principais fabricantes do setor.
Diante dos resultados alcançados por Bangladesh na redução da pobreza e no crescimento econômico, contrariando o ceticismo de alguns analistas renomados, como Kissinger, talvez não seja prudente apostar que o país vai afundar na crise. Mas, com todos os problemas que tem de enfrentar para não dar marcha-à-ré, não vai ser fácil manter o ritmo.
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