Em meio à grande fome que assolou o Vietnã em 1944 e 1945, levando cerca de dois milhões de pessoas à morte, segundo dados oficiais, Ho Chi Minh – o líder comunista do movimento que lutou contra o domínio colonial francês e a ocupação japonesa do país durante a Segunda Guerra Mundial – fez um chamamento dramático à população.
“A cada dez dias, todos os nossos compatriotas devem jejuar por uma refeição, e a cada mês, por três refeições, e dar o arroz poupado para os pobres”, afirmou Ho Chi Minh (1890-1969), que havia acabado de se tornar o primeiro presidente e também primeiro-ministro do Vietnã, em setembro de 1945, logo após a declaração de independência do país.
Hoje, passados quase 80 anos da convocação de Ho Chi Minh, que contribuiu para evitar que milhares de vietnamitas morressem de fome com as doações feitas na época por quem podia ajudar, o Vietnã praticamente deixou a pobreza extrema para trás. De um dos países mais pobres do mundo, tornou-se um dos exemplos mais bem-sucedidos no enfrentamento da miséria nas últimas décadas.
Custo de vida
De 1992, quando começou a produzir estatísticas confiáveis sobre a pobreza, a 2020, número mais recente disponível, o Vietnã tirou mais de 30 milhões de pessoas da pobreza, de acordo o Banco Mundial. O número de pessoas vivendo com menos de US$ 2,15 por dia, em valores de 2017 ajustados pelo custo de vida do país, caiu 98%, de 31,5 milhões para 600 mil, num período em que a população cresceu quase 40%, para 96,7 milhões.
Em termos relativos, o contingente vivendo na pobreza também diminuiu de forma considerável, de 45,1% da população para 0,7% do total – no Brasil, para efeito de comparação, o grupo dos mais vulneráveis representava 5,8% da população, conforme o Banco Mundial, em 2021. “O Vietnã liderou o caminho para os países de renda média baixa conseguirem uma redução rápida e sustentável da pobreza”, diz um relatório da ONU sobre o tema, publicado em 2023.
Esta reportagem sobre o Vietnã faz parte da série Os caminhos da prosperidade, dedicada à diminuição da miséria na Ásia, cuja contribuição foi fundamental para a redução significativa da pobreza no mundo nos últimos trinta anos. Lançada pelo Estadão no fim de janeiro, com a publicação de uma reportagem mostrando que os avanços alcançados pela região vão além da China e da Índia, a série já apresentou os casos de Bangladesh e da Indonésia, que também conseguiram tirar dezenas de milhões de pessoas da miséria desde 1990.
A última reportagem da série, que será publicada na próxima semana, vai mostrar o que aconteceu na Ásia Meridional e Oriental com a desigualdade e a chamada “pobreza multidimensional” – um conceito que leva em conta aspectos que superam a questão monetária, como saúde, educação e saneamento básico – no período em que a miséria diminuiu de forma dramática na região.
Apesar dos avanços, o Vietnã ainda precisa cuidar dos que continuam a viver na pobreza extrema. Além disso, quando se considera uma renda um pouco maior, de US$ 3,65 por dia ajustada pelo poder de compra, a parcela da população enquadrada na categoria, considerada como de pobreza moderada, sobe para 4%. Se a renda considerada no cálculo aumentar mais um pouco, para US$ 6,85 por dia, a taxa chega a 6%, o equivalente a quase seis milhões de pessoas, o que mostra o tamanho do desafio que o país ainda tem pela frente.
É preciso levar em conta também que, desde 1990, a desigualdade, medida pelo índice de Gini, sofreu uma ligeira alta. Mas, mesmo assim, não dá para deixar de reconhecer o progresso notável alcançado pelo Vietnã na redução da miséria no espaço de uma só geração.
O país pode comemorar ainda outras conquistas obtidas no campo social. A taxa de mortalidade de crianças de até 5 anos caiu para menos da metade desde 1990, de 52 em cada mil nascimentos para 21, segundo os dados do Banco Mundial. Ao mesmo tempo, entre 2000 e 2022, os serviços básicos de saneamento, que eram oferecidos a 50% dos habitantes do país, agora chegam a 92%.
No Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), que mede a capacidade de os alunos de 15 anos usarem as habilidades de leitura, matemática e ciências para enfrentar os desafios da vida real, o resultado revela o quanto o Vietnã evoluiu em tão pouco tempo, apesar de o desempenho na avaliação de 2022 ter sido o pior desde 2012, quando o levantamento começou a ser feito no país.
Em matemática, os estudantes vietnamitas ficaram em 31º lugar no ranking, que inclui 81 países e territórios, à frente dos Estados Unidos, da Noruega, de Israel e do Brasil, o 67ª da lista. Em leitura, o Vietnã ocupou o 34ª lugar e em ciências, o 37º, enquanto o Brasil ficou na 52ª e 62ª posições, respectivamente.
O Vietnã tem também uma das maiores participações de mulheres no mercado de trabalho, de acordo com a revista britânica The Economist. Conforme a publicação, 79% das mulheres de 15 a 64 anos estão no mercado de trabalho, um índice maior que o de todos os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), exceto a Islândia, a Suécia e a Suíça.
Agora, para alcançar estes resultados extraordinários, em especial na redução da pobreza extrema, o Vietnã teve de superar uma série de obstáculos que colocaram em xeque sua própria existência. Nas décadas que se seguiram à declaração de independência, que só foi reconhecida em 1954 na Conferência de Genebra, após uma longa guerra com a França, a privação da população continuou, apesar de a fome generalizada ter sido contida.
Entre 1955 e 1975, em plena Guerra Fria, o país – que foi dividido em dois em Genebra, o Vietnã do Norte, controlado pelos revolucionários de Ho Chi Minh, com apoio da ex-União Soviética e da China, e o Vietnã do Sul, amparado pelos Estados Unidos e por outros países do Ocidente – enfrentou uma guerra civil devastadora, com o envolvimento direto das forças americanas no conflito. O fim da disputa, vencida pelos comunistas do Norte, que se mantêm no poder até hoje, levou à reunificação do país, mas não deu ao Vietnã a paz que permitiria seu desenvolvimento e a superação da miséria em que vivia quase metade da população.
Além dos efeitos do embargo econômico imposto pelos Estados Unidos, que vigorou até meados dos anos 1990, o Vietnã ficou ainda mais isolado no plano internacional depois de invadir o Cambodja, então chamado de Kampuchea Democrático, em 1978. A ocupação, que foi uma resposta aos ataques desferidos pelo regime sanguinário do Khmer Vermelho contra o território vietnamita, acabou durando dez anos, após a deposição do ditador Pol Pot, para garantir a sobrevivência de um governo amigo no comando.
Por fim, o Vietnã ainda enfrentou um breve conflito com a China, em 1979, que apoiava o regime do Khmer Vermelho e invadiu o país em retaliação à ocupação do Cambodja e à deposição de Pol Pot. Embora tenha durado apenas um mês, o confronto foi violento e acabou gerando o rompimento das relações diplomáticas entre os dois países, que só foram restauradas 12 anos depois, em 1991.
Pelo longo período em que se viu envolvido em conflitos e também pelas dezenas de filmes e livros americanos que tratam da guerra com os Estados Unidos, o país ainda é associado pelo mundo afora com bombas de Napalm, sofrimento e hordas de refugiados – os chamados boat people, que fugiram depois da vitória do Norte sobre o Sul, em 1975.
Uma frase cunhada no início da década de 1990 pelo diplomata Lê Mai (1940-1996), ex-vice-ministro das Relações Exteriores do Vietnã, simboliza de forma emblemática tal percepção e a ambição do país de deixar no passado esse período conflituoso, que atrasou em décadas seu progresso e custou a vida de milhões de vietnamitas. “O Vietnã não é uma guerra, é um país”, disse Lê Mai na época, de acordo com um artigo escrito no ano passado por Wu Tien Loc, membro do Comitê Econômico da Assembleia Nacional vietnamita, no jornal Nhan Dan, órgão oficial do Partido Comunista.
A devastação e a miséria produzidas pelas guerras, porém, ainda foram agravadas pela situação desastrosa da economia. Um dos poucos países comunistas remanescentes no mundo, ao lado da China, da Coreia do Norte e de Cuba, o Vietnã, assim como seus pares ideológicos, apegou-se às políticas de estilo soviético abraçadas por seus dirigentes, com resultados catastróficos para a população.
Nos primeiros dez anos que se seguiram à unificação do país, entre meados dos anos 1970 e 1980, o antigo Vietnã do Norte, com seu regime de partido único, de orientação marxista-leninista, estendeu ao ex-Vietnã do Sul a política econômica socialista que praticava, expropriando as propriedades privadas e nacionalizando a terra e o capital, para consolidar seu poder sobre a região.
O planejamento central, baseado nos planos quinquenais, ditava os rumos da economia, de cima para baixo. O volume de produção das indústrias e das propriedades coletivas no campo era definido pelo Estado, assim como os preços de produtos e serviços, sem levar em conta a lei da oferta e da procura e os custos envolvidos no processo. A lucratividade das empresas não fazia diferença, já que as perdas eram cobertas pelo Estado. As trocas individuais foram “abolidas” pelo governo.
O modelo econômico socialista aprofundou a crise no país, que já estava abalado pelas guerras que enfrentava. Com o controle de preços dos produtos agrícolas, inexistiam incentivos para os agricultores aumentarem a produção. A escassez de alimentos e outros produtos era frequente. No campo, segundo um relatório produzido pela OCDE, faltavam gasolina, fertilizantes e outros itens, para tocar a produção. Máquinas quebradas ficavam sem reparo. As áreas cultivadas diminuíam e os custos aumentavam. A produtividade era baixa, muito baixa.
O tabelamento de preços também alimentava o mercado negro, onde produtos e serviços que faltavam nas gôndolas e nos estabelecimentos oficiais podiam ser encontrados a preços mais altos, impulsionando a economia informal. Com o aumento dos salários dos funcionários das estatais e dos servidores, a elevação dos preços do arroz para estimular o aumento da produção e a manutenção de subsídios generosos para diversas atividades, o governo teve de aumentar a impressão de dinheiro, para cobrir os déficits fiscais, e a inflação começou a subir.
Diante do fracasso evidente do modelo de economia planificada, que estava colocando o país no limiar de uma nova onda de fome, o governo anunciou um conjunto providencial de reformas econômicas liberalizantes, batizadas com o nome de Doi Moi (renovação), no 6º Congresso do Partido Comunista do Vietnã (PCV), em 1986.
Apesar de a Doi Moi ser geralmente apresentada como uma decisão voluntária do regime, muitos analistas questionam esta versão e afirmam que a crise havia adquirido tal magnitude que estava ameaçando a estabilidade do sistema, obrigando as autoridades a agir para evitar o pior. Na visão dos analistas, nada justificaria a decisão dos dirigentes do partido de ir contra tudo o que haviam pregado até então, a não ser a pressão social que vinha se tornando insustentável.
Mas, independentemente do que tenha levado o regime a dar uma guinada radical na economia, o fato é que, a partir da Doi Moi, complementada e aperfeiçoada diversas vezes nos anos seguintes, o destino do Vietnã se alterou de forma significativa. A economia se dinamizou e o país passou a crescer em ritmo chinês, levando à redução da miséria que atingia boa parte da população.
A metamorfose, inspirada no modelo chinês original, ancorado na produção de manufaturados para exportação, tinha o objetivo de promover a transição da economia de planejamento central para uma “economia de mercado orientada para o socialismo”, como o novo sistema foi batizado pelas lideranças políticas vietnamitas. Para elas, por mais estranho que possa parecer, a mudança era consistente com as ideias marxistas-leninistas do PCV e uma forma de construir o socialismo no longo prazo.
As medidas facilitaram a criação de empresas privadas, o investimento externo, o estabelecimento de empresas estrangeiras no país, a privatização de estatais e a melhoria do ambiente de negócios. Acabaram também com a fixação de preços de produtos e serviços pelo Estado e com o sistema de planejamento de produção. As terras foram dadas aos agricultores, para incentivar o aumento da produção e da produtividade. Os agricultores deixaram de ser obrigados a participar de cooperativas.
As mudanças incluíram também uma abertura comercial ampla, geral e irrestrita – uma política que vai na contramão da que está sendo implementada hoje no Brasil pelo governo Lula, com a adoção de medidas protecionistas para beneficiar as indústrias nacionais, aplaudidas por muitos empresários, que “adoram” uma reserva de mercado para se manter na zona de conforto, às expensas dos consumidores.
Em 2007, o Vietnã entrou na OMC (Organização Mundial do Comércio), para favorecer sua integração nas economias asiática e global. Hoje, o país faz parte de 16 tratados de livre comércio multilaterais, como o CPTPP (Acordo Compreensivo e Progressivo Transpacífico) e o Asean (Área de Livre Comércio da Asean), e também bilaterais, com países como Estados Unidos, Reino Unido, China, Japão, Coreia e Índia, além de União Europeia, que favorecem o crescimento das exportações e a geração de empregos na indústria.
Decorridos 37 anos desde a adoção das primeiras reformas da Doi Moi, as estatais, que dominavam a economia, hoje representam 30% do PIB (Produto Interno Bruto) e 27% da arrecadação de impostos, enquanto os bancos estatais detêm 40% dos ativos. Os empregados das estatais que chegavam a 16,5% do total em 2010, representavam apenas 7% em 2019.
Guerra comercial
Com as mudanças, a flexibilização da legislação trabalhista e a oferta de uma mão de obra cujo custo ainda é bem menor do que os da China e de outros países asiáticos, o Vietnã atraiu inicialmente grandes marcas do setor de calçados e vestuário, como Nike e Adidas, e nos últimos anos, gigantes do setor eletrônico, como Apple, Foxconn, Intel, LG e Samsung, que geraram milhões de empregos no país.
Em função da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, que se intensificou a partir de 2018, no governo Trump, e dos problemas havidos nas cadeias de suprimentos chinesas durante a pandemia, grandes grupos globais estão procurando diversificar a localização de suas produções e o Vietnã se tornou um destino preferencial. Em 2019, de acordo com a Economist, o Vietnã produziu US$ 31 bilhões de importações feitas pelos Estados Unidos, cuja produção mudou da China para outros países asiáticos.
A corrente de comércio, somando importações e exportações de produtos e serviços, passou de 81,3% do PIB em 1990 para 185,5% do PIB em 2022. Só smartphones e acessórios, os principais produtos exportados pelo Vietnã, renderam US$ 60 bilhões em vendas, de acordo com números oficiais, no ano passado.
A liberalização da economia levou ainda ao surgimento de grandes conglomerados vietnamitas como o Vingroup, que tem negócios nas áreas de construção e serviços imobiliários, além de controlar a VinFast, fabricante vietnamita de veículos que abriu o capital na Nasdaq, em Nova York, em meados de 2023, com um valor de mercado de US$ 85 bilhões, superior ao de grandes montadoras americanas, como a Ford e a GM.
De 1990 a 2022, o Vietnã teve um dos maiores crescimentos do PIB (Produto Interno Bruto) no mundo, de 6,7% ao ano, em média, de acordo com o Banco Mundial – o do Brasil cresceu 2,1% em média no mesmo período e o do mundo, 2,9%. Em valores correntes, o PIB vietnamita aumentou nada menos que 63 vezes, de US$ 6,5 bilhões para US$ 408,8 bilhões – o da China cresceu 46 vezes em igual período. Hoje, pelo valor absoluto do PIB, o Vietnã já se tornou a 35ª maior economia global, segundo as estimativas mais recentes do FMI (Fundo Monetário Internacional). Pelo PIB ajustado ao poder de compra, já ocupa a 26ª posição da lista. Entre 2006 e 2017, a produtividade aumentou 36%, que é um índice respeitável.
Apesar da liberalização econômica, o Vietnã continua a ser comunista e o PCV controla boa parte da vida no país, como o Grande Irmão, do livro 1984
Com o “milagre” econômico vivido nas últimas décadas, com forte impacto no nível de emprego, o país deixou a lista dos países mais pobres do mundo e desde 2010 passou a integrar o grupo dos países de renda média baixa. O PIB per capita ajustado pelo poder de compra multiplicou-se por 11 em trinta anos, de US$ 1,2 mil para US$ 13,5 mil, enquanto o do Brasil cresceu apenas 2,7 vezes, para US$ 17,8 mil. Na Ásia Meridional e Oriental, só o PIB per capita da China cresceu mais que o do Vietnã. Uma nova classe média também surgiu no país, reforçando o mercado interno.
Segundo uma projeção feita pela PwC (PricewaterhouseCoopers), uma das principais empresas internacionais de consultoria, o país poderá se tornar a 10ª maior economia do mundo em 2050, se mantiver o ritmo de crescimento das últimas décadas. O Vietnã faz parte também da lista dos “próximos 11″ do Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento globais, que inclui os países com potencial para ingressar no clube das maiores economias mundiais, junto com os principais integrantes do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), recentemente encorpado por novas adesões.
A grande questão para o Vietnã, assim como no caso da China, é até quando a economia de mercado encampada pelo regime, com ramificações globais, poderá conviver em harmonia com o sistema leninista de partido único em vigor no país, favorecendo a melhoria contínua da qualidade de vida da população e a redução da miséria.
Apesar da liberalização econômica, o Vietnã continua a ser comunista. O PCV, cujos tentáculos estão espalhados por todo o país, ainda controla boa parte da vida no Vietnã, como se fosse o Grande Irmão, do livro 1984, do escritor britânico George Orwell (1903-1950).
Leia também
No ranking dos países mais democráticos do mundo em 2022, produzido pela Economist, o país ocupa apenas o 138º lugar, de um total de 167 – o Brasil é o 104º. E na lista dos países com maior liberdade de imprensa produzida pela ONG Repórteres sem Fronteiras, o Vietnã está na 178ª colocação, em antepenúltimo lugar, à frente apenas da China e da Coreia do Norte – o Brasil está na 92ª posição.
Por ora, sob a vigilância e a repressão do regime, o Vietnã tem conseguido avançar na diminuição da pobreza extrema, mantendo uma economia de mercado que cresce em progressão geométrica em meio a fortes restrições à liberdade de expressão. E, no horizonte, não há indícios de que isso vá mudar. O crescimento econômico redentor, que alivia a miséria dos “descamisados”, acaba sendo usado pelas lideranças do partido para legitimar o regime autoritário do país e para mantê-las no poder.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.