Como uma das maiores bets do Brasil ensina a enganar apostadores até com ChatGPT; veja

Patrocinadora de cinco clubes da Série B, a Bet7k atrai novos jogadores capacitando parceiros a forjar depoimentos de ganhadores com promessas de lucro fácil e a perfis de falsos ‘experts’ em jogos; procurada, empresa não se manifestou, mas tirou ‘curso’ do ar

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Foto do author Vinícius Valfré
Foto do author Gustavo Côrtes
Atualização:

BRASÍLIA - A Bet7k, uma das principais casas de apostas brasileiras, oferece um curso para capacitação de parceiros que ensina a forjar depoimentos de falsos ganhadores, driblar regras de anúncios em redes sociais, montar perfis de falsos “experts” e até a usar o ChatGPT para aprimorar promessas de ganhos elevados com jogos de azar. Tudo para atrair novos apostadores a jogos virtuais como o do “tigrinho” e o do “aviãozinho”.

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Procurada, a Bet7k não se manifestou, mas o site onde estava hospedado o curso foi retirado do ar após o pedido de explicações apresentado pela reportagem.

Com cerca de 90 milhões de acessos por mês no site oficial, a Bet7k patrocina cinco dos 20 clubes da série B do Campeonato Brasileiro e a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV). O volume de visitas a coloca entre as dez mais populares do País, segundo o Similarweb, um serviço de monitoramento de tráfego.

O treinamento para fisgar apostadores é oferecido dentro do programa da bet para “afiliados”, como são chamados os que atuam para atrair novos apostadores para a Bet7k. O objetivo deles é obter novos cadastros e mais aportes de jogadores. Conforme o desempenho, os parceiros recebem comissões.

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O sistema de afiliação é comum e legal no mercado de produtos digitais, e passou a ser realidade na operação das bets. Contudo, especialistas e técnicos do governo federal alertam para riscos de esse mecanismo, nas casas de apostas, servirem para dribles em normas tributárias por falta transparência sobre critérios e sobre destinatários de pagamentos das comissões.

Em uma portaria baixada em julho, o governo federal definiu regras para reforçar a fiscalização sobre os afiliados. Entre elas, a obrigação de haver, entre a casa de aposta e o afiliado, um contrato que deve ficar à disposição do Ministério da Fazenda. Essa condição, entretanto, só vale a partir de janeiro de 2025.

Nesta terça-feira, 17, o Ministério da Fazenda publicou portaria que dá prazo até 1º de outubro para o fim do funcionamento no País das empresas de apostas de quota fixa que ainda não iniciaram sua regularização junto ao governo. Há um prazo adicional até 10 de outubro para o levantamento dos depósitos dos apostadores e, a partir de 11 de outubro, o órgão solicitará o bloqueio dos sites e a exclusão dos aplicativos das casas irregulares.

Bet7k é uma das casas de apostas que usam sistema de "afiliados" para recompensar pessoas que conseguem atrair novos jogadores Foto: Reprodução/Bet7k Partners

As principais casas de apostas têm programas de afiliados, mas a maioria filtra os parceiros. Na Bet7k, qualquer pessoa pode se tornar um “partner”, e, com um simples cadastro, ter acesso à capacitação oferecida pela empresa. A reportagem do Estadão assistiu aos 55 vídeos disponíveis. Eles transmitem a mensagem de que é possível conseguir a “liberdade financeira” só atraindo outros jogadores.

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“Você acaba de dar um passo muito importante em direção à liberdade financeira, em direção ao sucesso. Acabou o segredo, o jogo de esconde-esconde. Você vai saber de tudo em primeira mão, de um jeito que só a Bet7k sabe fazer”, diz o “professor” na abertura do treinamento.

O curso ensina, por exemplo, a forjar uma conversa no WhatsApp em que o interlocutor comemora a vitória no jogo e recebe um pagamento. O diálogo e o comprovante falsos servem para montar uma imagem que pode ser repassada em grupos, disposta em sites ou publicada nas redes sociais para que outras pessoas se sintam motivadas a arriscar dinheiro.

“Fala aí, afiliado. Beleza? Como eu disse que ia gravar uma aula ensinando a fazer esses depoimentos de WhatsApp, vou te mostrar como fazer isso através de um site que gera e já salva em imagem os depoimentos”, diz o instrutor.

Curso da Bet7k para parceiros ensina a forjar depoimentos de pessoas que ganharam dinheiro com apostas em jogos de azar Foto: Reprodução/Bet7k Partners

“Você pode pegar uma imagem de comprovante (de pagamento) e dizer assim: ‘olha aí quanto saquei agora’. Coloca a data, a hora e coloca que foi uma mensagem que eu recebi, beleza? (...) É uma imagem prontinha para você usar como depoimento.”

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Uma das aulas ensina a se associar a influenciadores para que eles promovam links de cadastros para jogos e recebem uma parte do dinheiro aportado pelo novo jogador. Para isso, a capacitação da Bet7k recomenda que histórias de sucesso sejam inventadas com o auxílio da inteligência artificial do ChatGPT.

“O lance são histórias. Quem está no Instagram, no Tik Tok, em qualquer outra rede, está ali para ouvir histórias, se entreter, saber do dia a dia. Então, a gente vai criar um roteirinho de histórias utilizando o ChatGPT que vai funcionar muito”, orienta o instrutor.

O treinamento disponibiliza o comando que deve ser inserido na inteligência artificial para que o ChatGPT apresente um roteiro atraente para convencer as pessoas. “Vamos na prática”, diz o instrutor. “Escreve para mim um roteiro para stories do Instagram. Deve ser curto, aproximadamente dois minutos, dividido em quatro etapas: ganho e resultado expressivo, controverso fora do comum, rápido e fácil e com chamada para ação”.

Com base nas orientações apresentadas no curso, a inteligência artificial sugeriu o texto a ser encenado pelos influenciadores nas redes sociais: “Nosso influenciador ganhou R$ 4,8 mil em 9 minutos. Tudo porque enquanto estava no banheiro clicou sem querer em um link em um grupo de WhatsApp e foi parar em um aplicativo maluco que mandava a hora certa de clicar em um botão.”

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A capacitação tem uma seção sobre gestão de anúncios de jogos em plataformas como Facebook. O curso ensina a criar diversos perfis falsos para fazer anúncios para que, caso as páginas sejam derrubadas por propaganda irregular, a estratégia não fique comprometida.

“Você precisa de perfis de Facebook. Pode ser o seu, dos seus amigos, seus parentes, de alguém que pode te vender. Por que precisamos de mais de um? Ela é uma rede que dá bloqueio. Hora ou outra você vai tomar um bloqueio do Facebook. Se você tiver só um perfil, não vai conseguir anunciar. A ideia é que você tenha três, cinco, dez perfis, para que você possa usar todos eles para fazer anúncios”, diz o orientador.

Instrutor de treinamento da Bet7k ensina a criar e 'esquentar' perfis falsos nas redes sociais para elaboração de anúncios de jogos; objetivo é driblar regras das plataformas Foto: Reprodução/Bet7k Partners

Para driblar o banimento, a orientação é “esquentar os perfis”, ou seja, fazer publicações para simular que a página falsa pertence a um usuário comum.

“Recomendo o processo de aquecimento. O que é isso? É o seguinte: o Facebook é uma rede que tem muita informação sobre a gente, sobre o nosso comportamento. Vamos supor que você pegue o perfil do seu primo e faça tudo o que vou mostrar pra vocês nesta aula. Muito provavelmente você vai tomar algum tipo de bloqueio. Recomendo que vocês ‘aqueçam’ o perfil, de 5 a 7 dias, antes de começar a fazer anúncios”, ensina.

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Outra habilidade ensinada na capacitação é a de construir um “robô” que direciona, no aplicativo Telegram, os interessados em apostas para cadastro em link do afiliado, que receberá comissão. Os grupos em aplicativos de conversas com dicas e “sinais” de apostas são comuns entre apostadores. A aula diz expressamente que os robôs fazem o “trabalho sujo” pelo afiliado.

“Essa estratégia é muito boa para quem roda estratégia dando grupo grátis, também para quem vende grupo ou anúncio E você pode direcionar ele para dentro de um bot no Telegram. E o bot vai fazer todo o trabalho sujo para você, tá?”, diz o instrutor.

Meta é levar jogadores ao ‘tigrinho’

A partir dos links gerados pelos afiliados da Bet7k, os apostadores são levados para páginas em que podem arriscar o dinheiro em jogos como o do “tigrinho”, do “aviãozinho” e o da “roletinha”. A empresa também oferece sistemas de apostas em eventos esportivos reais, mas em destaque na página oficial ficam os jogos do estilo “cassino”.

O “tigrinho” é o mais famoso. Originalmente chamado de Fortune Tiger, é uma espécie de caça-níquel virtual: na tela, aparece uma combinação de três figuras e fileiras. O objetivo do jogador é dar um comando capaz de alinhar as três figuras iguais em três fileiras que ficam girando, em tese, aleatoriamente.

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Jogos como esse têm levado pessoas de todas as idades a uma condição de vício e grupos de Jogadores Anônimos, que tentam superar a doença, surgem como tentativa de saída.

Com uma portaria publicada pelo governo federal em julho, jogos como o do “tigrinho” poderão ser ofertados no Brasil a partir do ano que vem, desde que cumpridas regras específicas, como a obrigação de informar o fator de multiplicação para cada real apostado e o montante a ser recebido em caso de acerto.

No entanto, todas as novas regras só entram em vigor a partir de 2025. Até então, todas as plataformas seguem operando em uma área cinzenta da legislação, com operação a partir do exterior e sem fiscalização. A rigor, jogos no modelo “caça-níquel” eram considerados totalmente ilegais até a edição das novas normas baixadas pelo governo.

O Ministério da Fazenda não comentou o caso até a publicação desta reportagem.

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O que dizem os especialistas

Para o advogado Aloísio Costa Jr, sócio do Ambiel Advogados, que vem atuando em ações judiciais envolvendo afiliados, as propagandas falsas podem gerar punições em duas esferas.

“Existe a responsabilidade perante o poder público. A legislação prevê a possibilidade de cassação de autorização, proibição de operação por determinado momento ou multa de até 100% dos valores prometidos como prêmio. O apostador é considerado um consumidor, então existe também a responsabilidade perante o Código do Consumidor, por publicidade enganosa ou abusiva”, disse.

Costa Jr destacou, ainda, que o marketing de afiliados é praticado há tempo, por exemplo, no ramo do varejo. Ele destaca que uma diferença central no caso das apostas é a obrigação de contrato entre o afiliado e a bet a partir do ano que vem. “O objetivo é verificar se não tem repasse indevido de valores para terceiros. A regulamentação trouxe essa necessidade para que as divisas fiquem no País e para que não possa haver distribuição de lucro para alguém oculto”, comentou.

Para Maurício Stegemann, professor de criminologia da Faculdade de Direito da USP, o País se preocupou mais em criar uma estrutura arrecadatória com as bets, e não com a repressão aos jogos de usar. E isso, na opinião dele, traz consequências. Ele avalia que o caso apresentado pela reportagem pode ser enquadrado como estelionato.

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“Falta disciplina penal no que diz respeito às apostas no Brasil. Casos como esse (apresentados pela reportagem) caem em uma vala comum de estelionato e estão submetidos à representação das vítimas às autoridades. E pessoas que são lesadas muitas vezes não tomam iniciativa porque sentem vergonha em admitir que foram enganadas. Para a polícia investigar um caso assim é preciso reunir várias denúncias de vítimas”, disse.

O Instituto Locomotiva, voltado à realização de pesquisas sobre características sociais e econômicas da sociedade brasileira, também tem estudado impactos do fenômeno das bets. Dados da entidade apontam que 68% dos apostadores afirmam que começaram a apostar influenciados por propagandas e patrocínios.

O presidente do instituto, Renato Meirelles, diz que estratégias como a da empresa citada na reportagem são efetivas por causa do apelo psicológico que elas oferecem inclusive para apostadores que, em teoria, têm relação saudável com os jogos de azar.

“A exposição constante a promessas de ganhos irreais acaba por “distorcer a percepção de controle”. Ou seja, o apostador pode começar a acreditar que tem mais controle ou conhecimento sobre os jogos do que realmente possui, o que aumenta sua confiança em continuar apostando”, disse.

Consultor e professor de marketing, Nino Carvalho pontua que uma capacitação como a oferecida pela Bet7k é eficiente porque uma parte considerável do público das apostas não consegue compreender aspectos legais e éticos da estratégia.

“Isso causa um efeito tão eficiente quanto prejudicial. Não é todo mundo que entende que aquilo é errado, antiético e, não raro, criminoso. O leigo pode achar aquilo uma coisa legal, um ‘hack’, uma forma acelerada de se chegar ao sucesso”, disse.

Carvalho também destaca que um aspecto central dessa percepção é a busca por ascender economicamente. E para um contingente de cidadãos, ávidos por status, bens e recursos financeiros, o interesse está em subir rapidamente na “cadeia alimentar”. Nesse sentido, o marketing das apostas é eficiente.

“Temos distancias grandes entre as castas econômicas. Há uma pressão social intrínseca na cultura que diz que é bacana viajar, tirar foto em lugar fora. Vejo a ‘molecada’ mensurando tudo pelo dinheiro que o outro tem. O centro da coisa é subir na cadeia alimentar. E a depender da percepção da pessoa ela vai buscar as formas mais rápidas e menos custosas”, afirmou.

“Esse tipo de treinamento enganoso certamente não é novo, no digital não é novo”, destacou. “É um discurso muito forte que atinge profundamente as pessoas e que é muito bem preparado, com escolhas cuidadosas das palavras, apelo visual forte. É um trabalho com direcionamento estratégico de vendas, de persuasão”, comentou o autor do livro Mais marketing, menos guru (DVS Editora).

Casa de aposta está registrada em ilha do Caribe

A Bet7k tem sede oficial em Curaçao, uma ilha caribenha, já que a legislação ainda não permite que este tipo de atividade econômica seja estruturada em território nacional. Publicamente, a CEO Talita Lacerda é quem fala em nome da empresa, em entrevistas à imprensa e em publicações nas redes sociais.

“A gente tem um contato muito próximo, tenta fazer a melhor experiência para os nossos afiliados e sempre trazendo novidades. A gente quer não só para nosso jogador, mas, com esse programa (7k.Partners), trazer diferenciais ao mercado”, disse em entrevista a um canal do YouTube publicada em novembro.

O Estadão não conseguiu localizá-la, mas procurou os sócios da Kasp Serviços Administrativos Ltda, que faz o recrutamento e a contratação de funcionários para a empresa, de acordo com informações de processos trabalhistas. A sede fica em um coworking em Belo Horizonte (MG) e os sócios são Carlos César de Lacerda Júnior e Kaio Augusto Silva Pacheco.

Carlos afirmou ser um terceirizado e prometeu intermediar o contato entre a reportagem e um representante da Bet7K, o que não ocorreu. Ele se recusou a disponibilizar contatos de Talita ou outro integrante da empresa e disse que alguém entraria em contato.

A operação do negócio tem participação também da Evipes Soluções em Pagamentos On Line Ltda. Tanto os sócios da Kasp quanto os da Evipes usam endereços eletrônicos marcados com “@bet7k”.

Confederação de vôlei diz não compactuar com atos ilícitos

Em nota, a Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) informou que o contrato com a Bet7k “se restringe exclusivamente à entrega de propriedades comerciais e de marketing”. A entidade acrescentou que a relação “é pautada por boas práticas de governança e integridade”, preza “por relações íntegras, transparentes e éticas com todos os seus parceiros e não compactua com atos ilícitos de qualquer natureza”. O contrato vai até 31 de dezembro de 2024. A Bet7k patrocina os times de futebol de Ituano, Operário, Mirassol, Novorizontino e Brusque. Eles foram procurados, mas não se manifestaram.

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