BRASÍLIA – O Congresso Nacional desidratou o pacote de corte de gastos do governo Lula mexendo em 19 trechos dos três projetos apresentados pelo Executivo para manter o arcabouço fiscal de pé. As mudanças afrouxam medidas apresentadas pela equipe econômica, que já haviam sido vistas como insuficientes por economistas e agentes do mercado financeiro para reequilibrar as contas públicas.
Os parlamentares concluíram a votação dos três projetos nesta sexta-feira, 20. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, nega desidratação e afirma que as alterações feitas pelo Legislativo (veja lista abaixo) terão impacto de cerca de 1 bilhão em dois anos. Inicialmente, a pasta projetava uma economia de R$ 71,9 bilhões até 2026.
As mudanças feitas no Congresso, e apoiadas pelo próprio governo para garantir a aprovação do pacote, impactam o corte de gastos esperado em programas como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), diminuem a arrecadação com o fim do Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito (DPVAT) e abrem caminho para aumento de despesas, com proteção às emendas parlamentares.
O governo considera que aprovou o possível. Ao apresentar o pacote fiscal há menos de um mês, a equipe chefiada por Haddad anunciou uma economia R$ 71,9 bilhões em 2025 e 2026, até o término do mandato de Lula, atingindo uma economia de R$ 327 bilhões até 2030. O cálculo foi questionado por economistas, que não viram as medidas como suficientes para controlar o crescimento das despesas públicas.
Nesta sexta-feira, Haddad afirmou que as mudanças do Congresso terão um impacto em torno de R$ 1 bilhão. Na quinta-feira, o secretário-executivo da pasta, Dario Durigan, havia dito ao Estadão/Broadcast que a economia de R$ 70 bilhões até 2026 estava mantida.
BPC é o principal alvo de críticas e projeto foi o mais alterado
O projeto de lei que mexeu em benefícios sociais foi o mais alterado. Foram 11 mudanças no texto do relator, deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL) – dez delas relacionadas ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda.
A alteração no BPC foi criticada desde que o pacote chegou ao Congresso, mobilizando a própria base aliada do governo contra o dispositivo.
O relator, entre outras mudanças, rejeitou a definição de “pessoa com deficiência” proposta no projeto do governo, excluiu da regra de coabitação os rendimentos de familiares que não moram na mesma casa e rejeitou a regra que considerava propriedade de bens ou direitos na concessão do benefício. Ele também não aceitou revogar que o benefício já concedido a qualquer membro da família não seria computado no cálculo da renda familiar.
“Queria reconhecer a importância das alterações das possibilidade de recebimento do BPC. Caíram pontos muito sensíveis, como aquele em que duas crianças com deficiências, uma delas teria que abrir mão do BPC. Ou o conceito de família estendida, que iria diminuir a possibilidade acesso ao BPC”, afirmou a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP).
Deputados governistas avaliam que o governo errou na estratégia ao mexer no pagamento de um auxílio a pessoas carentes em troca de uma economia que não era tão relevante para o pacote fiscal. A equipe econômica esperava economizar R$ 2 bilhões por ano com o BPC, totalizando R$ 12 bilhões até 2030. “Tem que cortar gastos, mas o caminho não é começar pelo BPC. É uma economia que não faz sentido para o governo federal, em detrimento das pessoas que têm direito”, afirmou o deputado Duarte Junior (PSB-MA).
O governo argumenta que apresentou mudanças no BPC não para tirar o benefício de pessoas que dependem do auxílio, mas para combater as fraudes e o que o ministro Fernando Haddad chamou de “indústria de liminares”. “A mudança sobretudo é evitar e acabar com a indústria de liminares. O programa não altera a renda e ainda introduziu a biometria para acabar com as fraudes. Não estamos retirando nenhum direito”, afirmou o líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE).
No Senado, o governo correu o risco de ter o projeto novamente alterado – o que exigiria uma nova votação na Câmara. Os senadores se levantaram contra a regra que restringia o BPC a pessoas com deficiência de grau moderado ou grave. O trecho abria margem para negativa do benefício a pessoas com deficiência de grau leve, como ocorre em alguns casos de autismo e síndrome de Down. Foi feito um acordo e o Palácio do Planalto se comprometeu a vetar o dispositivo.
Além das mudanças no BPC, foi derrubado no projeto de lei a uma mudança na correção do Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF), que geraria uma economia de R$ 16 bilhões até 2030, segundo a Fazenda.
Deputados desidratam mudanças no Fundeb, nos supersalários e impedem flexibilização do Orçamento
Na Câmara, os deputados desidrataram a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) em quatro trechos. Uma das principais alterações foi no Fundeb. O governo queria que até 20% dos recursos que a União coloca no fundo fossem destinados ao ensino em tempo integral, o que poderia abrir um espaço fiscal de R$ 11,6 bilhões no ano que vem.
A Câmara reduziu o porcentual para 10% e estabeleceu que o dinheiro da complementação da União no Fundeb será usado para ensino em tempo integral apenas em 2025, diminuindo o impacto para R$ 5,8 bilhões. O valor, no entanto, ainda é maior que a economia anunciada pelo governo ao apresentar o pacote fiscal (R$ 4,8 bilhões).
A partir de 2026, os Estados e municípios terão de destinar 4% de recursos próprios que colocam no Fundeb para esse programa, aumentando o impacto fiscal entre R$ 10 bilhões e R$ 12 bilhões. Na prática, a União transfere a responsabilidade para os governos locais e espera economizar recursos com isso.
A economia efetiva de gastos para a União, no entanto, vai exigir que o governo federal diminua recursos do orçamento da Educação no mesmo montante. Ao cortar recursos, o governo federal deverá assumir o ônus político e ainda respeitar o piso constitucional da Educação exigido pela Constituição, que consome despesas não obrigatórias.
Os deputados também flexibilizam o fim dos supersalários no funcionalismo público. O texto do governo proibia que remunerações não previstas em lei complementar fossem pagas fora do teto salarial, atualmente de R$ 44 mil mensais. A limitação foi direcionada para lei ordinária, mais fácil de ser alterada.
Para o professor da Fundação Dom Cabral e autor do livro “O País dos privilégios”, Bruno Carazza, a mudança permitirá que resoluções do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) continuam a criar os “penduricalhos”.
“Há um entendimento bastante questionável do Judiciário de que resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) têm força de lei. Corre-se o sério risco de que eles continuarão criando penduricalhos administrativamente”, explicou Carazza.
Conforme o Estadão revelou, juízes fizeram lobby dentro do plenário da Câmara em defesa da categoria para desidratação da proposta. Além disso, a Câmara retirou da PEC mudanças no BPC e impediu que a medida proposta pelo governo entrasse na Constituição.
Congresso preserva emendas e dificulta corte de recursos para cumprir arcabouço fiscal
O Congresso rejeitou um dispositivo da PEC que tirava a obrigação de o Poder Executivo executar o Orçamento aprovado pelo Congresso Nacional. A medida, incluída na Constituição em 2019 e que ficou mantida, impede o governo de cancelar, por exemplo, emendas parlamentares, que são direcionadas por deputados e senadores para redutos eleitorais. Revogar o dispositivo era uma aposta da equipe econômica para ter mais flexibilidade no Orçamento na hora de cumprir o teto de despesas.
No projeto de lei complementar que faz parte do pacote, o Congresso desidratou outros quatro trechos e derrubou a possibilidade de o governo federal cortar emendas impositivas (não obrigatórias) para cobrir gastos obrigatórios e cumprir o arcabouço fiscal. Essas emendas são recursos indicados por parlamentares e bancadas estaduais que o governo é obrigado a pagar conforme a definição do congressista.
Ao aprovar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que orienta o Orçamento de 2025, o Congresso rejeitou uma proposta no mesmo sentido, preservando as emendas, que devem passar de R$ 50 bilhões no ano que vem.
Outra alteração foi no uso de recursos de fundos públicos, que hoje são carimbados. Por um lado, o relator da proposta, deputado Átila Lira (PP-PI), incluiu no texto um dispositivo que determina que, entre 2025 e 2030, o superávit financeiro de fundos públicos só poderá ser usado para amortizar a dívida – o texto não especificava a finalidade e abria margem para aumento de gastos. Por outro lado, a Câmara diminuiu os fundos alcançados de oito para cinco, preservando o Fundo Nacional Antidrogas (Funad), o Fundo da Marinha Mercante (FMM) e o Fundo Nacional de Aviação Civil (FNAC). O impacto da desvinculação caiu de R$ 38 bilhões para R$ 18 bilhões.
Outra medida que caiu foi a proposta que limitava a restituição de créditos tributários pelas empresas. O trecho enfrentava forte resistência entre vários setores da economia, além de ter integrado uma Medida Provisória (MP) editada pelo governo em junho e que foi devolvida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Os deputados também revogaram a lei que instituiu o Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito (SPVAT), antigo DPVAT, diminuindo a capacidade de arrecadação do governo federal.
“Acredito que foi feito um esforço por parte dos relatores, mas quero dizer que tudo que vai ser aprovado não será suficiente para nós possamos atingir o equilíbrio fiscal”, afirmou o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), vice-líder do governo e autor de uma proposta alternativa que trazia um ajuste mais rígido nas contas públicas.
Os pontos de desidratação
Na PEC:
- Diminuição da parcela do Fundeb que pode custear ensino integral
- Exclusão de mudanças no BPC
- Flexibilização do fim dos supersalários
- Manutenção do dever de execução do Orçamento
No projeto de lei complementar:
- Proteção de emendas parlamentares obrigatórias contra cortes
- Exclusão do limite à compensação de crédito tributários de empresas
- Diminuição da quantidade de recursos de fundos públicos que podem ser direcionados para abatimento da dívida pública
- Revogação do DPVAT
No projeto de lei ordinária:
- 10 mudanças que desidratam ajuste no BPC
- Manutenção da correção atual dos recursos do Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF)
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