Construção de Angra 3 pode gerar custo extra aos consumidores de até R$ 61 bi, mostra estudo da EPE

Empresa de Pesquisa Energética calculou quanto os consumidores pagariam a mais em 40 anos em diversos cenários; decisão sobre retomada das obras pode ser sair neste mês

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Foto do author Alvaro Gribel
Atualização:

BRASÍLIA – A construção da usina nuclear de Angra 3 pode fazer com que os brasileiros paguem até R$ 61,5 bilhões a mais nas contas de luz por um período de 40 anos. A conclusão é de um estudo elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a que o Estadão teve acesso, que comparou o custo da energia que seria gerada pela usina em relação a outras fontes disponíveis no País.

Angra 3, em Angra dos Reis (RJ), é uma obra que se arrasta desde 1981. Apesar do alto impacto para o consumidor, pelo preço a ser pago pela energia gerada, o ministro de Minas e Energia (MME), Alexandre Silveira, já afirmou que tem uma visão “intransigente” sobre o assunto, a favor do término da obra. A decisão sobre a usina está na pauta da próxima reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), como mostrou o Estadão/Broadcast, prevista para este mês.

Angra 3 começou a ser construída em 1981, ainda no regime militar. Cerca de 65% do projeto já foi executado e o seu término ainda irá exigir R$ 23 bilhões em investimentos. Foto: Fabio Motta/Estadão

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No estudo, a EPE, empresa pública que presta serviços ao MME, fez várias simulações de impacto entre 2031, quando a usina entraria em operação, e 2071, ao término do contrato de concessão. Procurada, a EPE disse que o estudo está sob sigilo e não pode comentar. Já o MME confirmou que a decisão sobre a construção da usina está na pauta do CNPE.

A premissa do estudo é de que o custo de energia de Angra 3 será de R$ 653,31 o Megawatt-hora (MWh), cálculo feito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), levando em conta tudo que já foi gasto na obra e o que precisará ser pago para a conclusão do projeto.

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Esse número é comparado ao custo de outras fontes de energia (veja mais abaixo), indicando se o consumidor terá um gasto maior ou não. Em todas as simulações feitas com fontes disponíveis no Brasil, o consumidor pagaria a mais, com contas que vão de R$ 21,09 bilhões a R$ 61,55 bilhões em 40 anos.

Simulações de impacto

O estudo da EPE servirá de embasamento para a decisão do CNPE, que é presidido pelo ministro Silveira e conta com a participação de diversos ministérios, entre eles a Casa Civil e o Ministério da Fazenda. O documento, ainda sigiloso, mostra os impactos:

  • Termelétricas a gás - R$ 21,09 bilhões: Compara o custo da energia de Angra 3 com leilões realizados para contratar termelétricas a gás, que tiveram preço médio de R$ 468,09 o MWh. Essa comparação é considerada a mais coerente em relação à nuclear por interlocutores do setor ouvidos pela reportagem, já que as termelétricas a gás podem gerar energia “firme”, ou seja, durante todos os dias do ano, 24 horas por dia, assim como as usinas nucleares. O custo a mais para os consumidores, com a conclusão de Angra 3, seria de R$ 21,09 bilhões na conta de luz, entre 2031 e 2071.
  • Ambiente regulado (R$ 34,69 bilhões): Compara o custo de energia de Angra 3 com o custo médio no Ambiente de Contratação Regulada (ACR), ou seja, o custo para as distribuidoras de energia, fixado em R$ 348,72 o MWh em 2023. O custo a mais para os consumidores, nesse caso, seria de R$ 34,69 bilhões entre 2031 e 2071.
  • Angra 1 e Angra 2 (R$ 34,83 bilhões): A EPE comparou o preço de Angra 3 com a energia gerada pelas usinas nucleares de Angra 1 e Angra 2, que têm preço médio de R$ 347,50 o MWh. O custo a mais para os consumidores de Angra 3 em relação a essas usinas seria de R$ 34,83 bilhões no período.
  • Leilões de reserva (R$ 39,81 bilhões): Compara o custo de Angra 3 com os leilões de energia de reserva realizados no País entre 2008 e 2023. Nesses leilões, que tiveram preço médio de R$ 303,80 o MWh, são contratados projetos com objetivo de poupar água dos reservatórios das hidrelétricas. O custo a mais para os consumidores com Angra 3 seria de R$ 39,81 bilhões.
  • Planejamento energético (R$ 42,37 bilhões): Compara o custo de Angra 3 com o chamado “custo marginal de expansão do sistema elétrico” – ou seja, com que está previsto para entrar no sistema elétrico brasileiro nos próximos dez anos, em todas as fontes de energia, com preço médio do MWh estimado em R$ R$ 282,26. O custo a mais para os consumidores seria de R$ 42,37 bilhões.
  • Mercado livre (R$ 61,55 bilhões): Compara o custo de Angra 3 com os preços do chamado Ambiente de Contratação Livre (ACL), que tem custo de R$ 112,88 o MWh. No mercado livre, a energia é negociada considerando todas as fontes, incluindo as renováveis, que não são “firmes” como a nuclear, ou seja, possuem intermitência, como a solar (quando anoitece) e a eólica (quando não há ventos). Nesse caso, o custo a mais para os consumidores chega a R$ 61,55 bilhões.
  • Fontes nucleares internacionais (de -R$ 65,96 bi a +R$ 40,72bi) - A EPE comparou o custo da energia de Angra 3 com a de outras usinas nucleares internacionais. Em dois casos, Angra 3 seria mais barata, por já ter parte da obra avançada e ser de tecnologia mais antiga. Na comparação com usinas começando do zero e com tecnologia de ponta ocidentais, o consumidor brasileiro teria economia com Angra 3 de R$ 65,96 bilhões e R$ 15,43 bilhões, a depender das condições de financiamento. Em outros dois casos, incorporando usinas de todo o mundo, Angra 3 seria mais cara, em R$ 18,26 bi e R$ 40,72 bilhões. As condições de financiamento e de remuneração de capital têm grande influência sobre os custos.

EPE vê ‘benefícios indiretos’

No estudo, a EPE ressalta que há efeitos benéficos indiretos com a construção de Angra 3, mas que não são mensuráveis. Entre eles, a não emissão de gases de efeito estufa pela fonte nuclear, a geração de empregos de alta qualificação, além do estímulo à indústria nuclear e a segurança ao sistema elétrico, por ser uma fonte de geração “firme”, capaz de gerar energia 24 horas por dia, durante todos os 365 dias no ano.

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O BNDES, por sua vez, calculou que o custo para o abandono do projeto é de R$ 21 bilhões, muito próximo ao valor estimado para a conclusão, de R$ 23 bilhões. Sem finalizar a obra, haveria prejuízo de R$ 9,2 bilhões em financiamentos já concedidos pela Caixa e o próprio BNDES, R$ 2,5 bilhões com rescisão de contratos, R$ 1,1 bilhões com devolução de incentivos fiscais, além de R$ 940 milhões para desmobilização de obras e R$ 7,3 bilhões de custo de oportunidade sobre o capital investido.

Especialistas, contudo, explicam que, no caso do abandono, o prejuízo não seria arcado pelos consumidores de energia, mas pelos atores envolvidos no projeto. No caso da conclusão, todo o custo seria repassado para a conta de luz, o que ajuda a entender o valor elevado do MWh.

‘Encargo de política nuclear’

Para o presidente da Associação dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres (Abrace), Paulo Pedrosa, a conclusão da usina, com a obrigação de compra da energia pelos consumidores, seria o equivalente a criação de um novo “encargo” para custear o desenvolvimento da indústria nuclear no Brasil.

“O problema do setor elétrico, do custo da energia, não está apenas nos encargos visíveis e nos jabutis, impostos pelo legislativo, ele está também nos encargos invisíveis. A retomada de Angra 3 paga pelos consumidores seria um encargo de política nuclear. E isso tem potencial de transferir para o consumidor inclusive prejuízos privados”, diz.

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Na visão do ex-diretor geral da Aneel e ex-presidente do grupo Light, Jerson Kelman, Angra 3 seria útil ao sistema, por gerar energia “firme”, que traria mais previsibilidade ao sistema elétrico. O problema, aponta, é que existem alternativas mais baratas. Por isso, o melhor é abandonar o projeto.

“Usinas nucleares não emitem gases de efeito estufa e geram continuamente, ao contrário das fontes eólica e solar, que são intermitentes. Se estivesse funcionando, Angra 3 seria útil para o sistema elétrico. Como não está, cabe perguntar se concluí-la seria a alternativa de mínimo custo para o consumidor de eletricidade. A resposta é não”, afirma.

Tanto Pedrosa quanto Kelman entendem que, se é vontade do governo fomentar o setor, que o custo seja financiado pelo Tesouro.

“Se existe uma vontade nacional em relação à energia nuclear, isso é uma decisão legítima, mas deveria ser tomada no Orçamento da União”, diz Pedrosa. “O custo extra deveria ser arcado pelos contribuintes e não pelos consumidores. Dado o aperto fiscal, trata-se de hipótese altamente improvável”, completa Kelman.

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Histórico de Angra 3 e o vaivém das obras

Angra 3 é considerada uma usina nuclear de tecnologia defasada, já que foi projetada nos anos 1970 e começou a ser construída em 1981, ainda no regime militar. Com potência instalada de 1,4 GW, cerca de 65% do projeto já foi executado e o seu término ainda irá exigir R$ 23 bilhões em investimentos, segundo estudo do BNDES, incluindo o financiamento da obra, compra de equipamentos e contratação de serviços especializados de engenharia.

Em 1984, as obras foram interrompidas, em função da crise econômica no Brasil, que provocou um forte aumento dos custos de financiamento da projeto. Em 2002, após a crise de fornecimento de energia no governo Fernando Henrique Cardoso, o CNPE editou uma resolução estabelecendo novos critérios para a finalização da obra.

No segundo governo Lula, em 2009, o projeto foi retomado, com previsão de término em 2016 e fixação de preço em R$ 148,65 o MWh (valor nominal, da época). Em 2015, contudo, com atrasos nas obras, houve nova interrupção, com rescisão de contratos motivada por investigação de corrupção pela Operação Lava Jato.

Em 2018, no governo Temer, uma nova resolução do CNPE determinou novo preço para usina, de R$ 480 o MWh. Em 2019, já no governo Jair Bolsonaro, o projeto foi qualificado para o Programa de Parceria de Investimentos (PPI) e um comitê interministerial foi criado para definir um novo modelo de negócios para alavancar o empreendimento.

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Em 2021, resolução definiu as diretrizes para que um novo preço de energia da usina fosse calculado, a partir de estudos do BNDES e da EPE, que também criou um grupo de trabalho para estudar a obra e seus impactos aos consumidores.

Em 2022, com a capitalização da Eletrobras, foi criada a Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (ENBpar), que ficou responsável pela Eletronuclear, estatal que faz a gestão das usinas Angra 1, 2 e também de Angra 3. Procurada pela reportagem, a Eletronuclear afirmou que não teve acesso ao estudo da EPE.

Disputa política e Eletrobras

O imbróglio em torno da obra de Angra 3 também envolve a participação do governo federal na Eletrobras. Isso porque a Eletrobras deixou de ser controlada pelo governo em 2022, com a desestatização da empresa, mas ela ainda detém 35% das ações da Eletronuclear.

Como mostrou o Estadão, o governo negocia trocar parte das ações que tem na Eletrobras para assumir o controle total da Eletronuclear. Com a permuta, aumentaria também o número de cadeiras a que tem direito no conselho de administração da Eletrobras. Hoje, a União possui 43% das ações da Eletrobras, mas com direito a apenas 3 das 10 cadeiras no conselho.

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A iniciativa, segundo interlocutores ouvidos pela reportagem, seria extremamente lesiva para o governo federal e é vista com maus olhos também pelo Ministério da Fazenda.

A Eletrobras, hoje uma corporação privada, iria “se livrar” de sua participação na Eletronuclear, responsável pela obra problemática de Angra 3. O governo teria mais assentos no conselho da Eletrobras, mas que serviriam apenas para indicações políticas, já que a Eletrobras continuaria tomando decisões pela lógica de mercado, já que virou uma corporação, sem a influência do MME.

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