RIO - As famílias brasileiras ainda não conseguiram recuperar o padrão de consumo de bens não essenciais que tinham antes da crise causada pela covid-19, mostra o Monitor do PIB, da Fundação Getulio Vargas (FGV). Segundo o indicador, o consumo das famílias cresceu 4,0% ano passado, impulsionando o crescimento econômico de 2,9%, mas o nível elevado das taxas de juros e a dificuldade de ganhos salariais reais no mercado de trabalho atrapalharam gastos com a aquisição de produtos mais caro, como eletrodomésticos e automóveis. Esses obstáculos seguem fortes e deverão frear o crescimento deste ano, aprofundando a desaceleração da economia.
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Conforme dados desagregados do Monitor do PIB, embora o consumo das famílias como um todo tenha encerrado dezembro de 2022 em patamar 1,01% acima do de fevereiro de 2020, último mês antes da pandemia, o resultado foi sustentado pelos gastos com bens não duráveis (3,29% acima do pré-covid) e com serviços (6,08% acima). O consumo de bens semiduráveis encerrou o ano de 2022 em patamar 21,42% abaixo do pré-pandemia, enquanto o consumo de bens duráveis estava 9,82% abaixo. Os cálculos sobre o volume consumido pelas famílias por tipo de bens e serviços levam em consideração a série mensal encadeada com ajuste sazonal.
“É uma economia em total desaceleração, por causa da inflação, que tira poder de consumo das famílias. O consumo de bens duráveis teve queda, o que tem relação com o pagamento de juros mais altos. Depois as pessoas perderam o Auxílio Brasil. Teve saque extra do FGTS, que acabou. Esse tipo de dinâmica fez com que o consumo das famílias de bens duráveis tivesse queda, mas o de serviços cresceu o tempo todo”, disse Claudio Considera, coordenador de Contas Nacionais do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), lembrando que havia uma demanda por serviços reprimida pela pandemia.
A desaceleração da economia no fim do ano passado deverá ser confirmada com a divulgação dos dados do Produto Interno Bruto (PIB, o valor de tudo o que é produzido na economia) do quarto trimestre, na próxima quinta-feira, 2, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Monitor do PIB, que antecipa a tendência a partir das principais fontes de dados e com a mesma metodologia empregadas pelo IBGE, apontou retração de 0,2% no quarto trimestre ante o terceiro, apesar do crescimento anual de 2,9%.
Segundo economistas e analistas de mercado, a desaceleração de 2022 já era esperada, mas acabou ficando mesmo para o fim do ano. O primeiro e o segundo trimestre, principalmente, surpreenderam positivamente. Ao longo do ano passado, economistas foram explicando que fizeram a diferença para adiar a desaceleração os estímulos à renda das famílias garantidos por medidas do governo – como a elevação do pagamento mensal do programa de transferência Auxílio Brasil, a redução dos tributos sobre combustíveis, a liberação de saques extraordinários do FGTS e auxílios específicos para caminhoneiros e taxistas – e a “normalização” do consumo dos serviços. Nessa normalização, após a redução das restrições ao contato social, por causa da covid-19, as famílias gastaram mais com bares, restaurantes, hotéis e entretenimento do que os analistas projetavam.
Agora, os juros elevados e o esgotamento da recuperação de vagas no mercado de trabalho deverão ditar o ritmo do crescimento. Na verdade, os dados desagregados do Monitor do PIB mostram que o aperto nas condições de crédito – com o encarecimento das parcelas mensais das compras a prazo de itens como automóveis e eletrodomésticos – já vinham afetando o consumo de bens semiduráveis e duráveis.
Piora
De acordo com a economista Alessandra Ribeiro, sócia da Tendências Consultoria, o processo de desaceleração do crescimento econômico deverá se agravar neste início do ano porque as condições de crédito pioraram ainda mais. Isso porque, mesmo com a taxa básica de juros (a Selic, definida pelo Banco Central em 13,75% ao ano) estacionada, as taxas de mercado de médio e longo prazo se elevaram. Segundo dados divulgados pelo Banco Central (BC) na segunda-feira, 27, a taxa média de juros nas concessões de crédito para empresas com recursos livres ficou em 25,3% ao ano em janeiro, ante 23,1% ao ano em dezembro.
Para Ribeiro, os principais responsáveis por essa elevação nos juros de mercado são as incertezas em torno do desequilíbrio das contas do governo, enquanto o Ministério da Fazenda não anuncia um novo conjunto de regras fiscais, e os ruídos causados pelas críticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao BC.
“A curva futura de juros, quando a gente compara lá com o período eleitoral, subiu bem, ou seja, está muito mais caro em relação ao que a gente tinha no fim do ano passado para se financiar. Seja o Tesouro sejam os agentes privados”, afirmou a economista da Tendências, lembrando que isso resulta, na prática, em elevação de juros para os tomadores finais, famílias e empresas, mesmo que o BC não tenha mexido mais na taxa básica Selic.
Para Bráulio Borges, economista sênior da LCA Consultores, outro fator a pesar sobre a elevação dos juros de mercado neste início de ano é o escândalo corporativo da Lojas Americanas. A rede varejista acabou pedindo recuperação judicial, após revelar que deixou de lançar em torno de R$ 20 bilhões em seus balanços financeiros. Além de os valores se referirem a operações de financiamento triangular para o pagamento de fornecedores, Borges lembrou que os valores são vultosos e o caso envolve os principais bancos do País. Ainda que temporariamente, a tendência é que haja retraimento por parte do sistema financeiro na hora de conceder crédito, a ponto de obrigar a equipe econômica a adotar medidas para mitigar o problema.
“A Americanas é importante pelo tamanho”, afirmou Borges. “Os bancos tomaram prejuízo e quando eles tomam prejuízo, isso afeta a concessão de crédito em todas as outras linhas. Esse episódio da Americanas pode resultar num ‘credit crunch’ (travamento de crédito) para a economia brasileira como um todo, não só para empresas varejistas, que sofreram contágio mais imediato, mas para empresas de outros segmentos e mesmo para o consumidor final. Os bancos ficam mais criteriosos depois de tomarem um prejuízo como esse”, completou o economista, lembrando que, além disso, a própria elevação generalizada de juros no último ano já acende sinais de alerta sobre o endividamento privado.
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