BRASÍLIA - A possível retomada do mecanismo que permite ao governo federal pactuar metas com as agências reguladoras pode dar margem à interferência do Executivo na atuação das autarquias, de acordo com especialistas e ex-integrantes de órgãos reguladores ouvidos pelo Estadão/Broadcast. Como mostrou a reportagem mais cedo, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva avalia recriar o chamado contrato de gestão, cujo descumprimento poderia levar a punições e até à exoneração de diretores das agências. Questionado sobre o tema, até o Ministério de Portos e Aeroportos se mostrou contrário à ideia.
Os contratos existiam até a nova lei das agências (Lei 13.848/2019), sancionada no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Agora, o presidente Lula quer fazer uma revisão geral na lei das agências reguladoras, sancionada em 2019 e o ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias, tem colhido sugestões dos diversos ministérios para formular uma proposta.
“Era uma forma de controle social. No princípio, no caso da Aneel, os dirigentes podiam ser exonerados se as metas do contrato de gestão não fossem atingidas. Após críticas, no início dos anos 2000, a lei foi alterada, de forma que os dirigentes não podiam mais ser exonerados”, detalha Guilherme Vinhas, sócio do Escritório Vinhas e Redenschi Advogados e especializado em transição energética.
Nem todas as agências reguladoras tinham esses contratos de gestão previstos em suas respectivas leis, e seus formatos eram diferentes entre si. Diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) entre os anos 2005 e 2008, Jerson Kelman defende que esses acordos não cabem para entidades autárquicas.
Kelman argumenta que os contratos de gestão podem ser adequados para entidades da administração direta ou empresas estatais, substituindo o “controle de processos” pelo “controle de resultados” — ou seja, por metas estabelecidas com a gestão central do Executivo.
“Porém, (os contratos) não se aplicam a entidades de Estado, como agências reguladoras, que podem ser chamadas a decidir sobre temas em que o governo ocupe um dos polos da disputa. Por exemplo, o valor de indenização pelos ativos não depreciados no caso de caducidade de uma concessionária de serviço público”, avalia Kelman, que também foi presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), entre 2001 a 2004).
Outro ex-diretor da Aneel, Edvaldo Santana pontua que a possível retomada dos contratos de gestão significa pôr em prática uma experiência “com resultados duvidosos”. Ele atuou no órgão regulador entre 2005 e 2013.
“Os contratos de gestão eram instrumentos muito ineficazes, por isso foram extintos. No tempo que fiquei na Aneel, foram oito anos como diretor e seis como superintendente, nunca vi qualquer discussão ou cobrança em relação a metas não cumpridas, por exemplo. Eram verdadeiros ‘me engana que eu gosto’”, disse Santana, que hoje é diretor executivo da empresa Negócios de Energia Associados (NEAL).
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Um parecer do contrato de gestão entre MME e Aneel, referente ao ano de 2018, cita metas como consolidar os normativos relacionados às outorgas de empreendimentos de geração de energia; fiscalizar a implantação de usinas de energia elétrica para o cumprimentos de prazos estabelecidos; ou apurar e divulgar o índice de satisfação do consumidor.
Para Virgínia Machado, professora de Direito Público do Uniarnaldo Centro Universitário, a volta desses contratos “pode ser considerada positiva” quando se observam novas metas estabelecidas entre o Ministério e as entidades. O mecanismo fala do aperfeiçoamento de gestão e desempenho. Porém, a advogada lembra que a forma como esse instrumento será estabelecido pode eventualmente “sugerir uma tentativa de controle político” dentro das agências.
As agências reguladoras estão sob o controle externo do Tribunal de Contas da União (TCU), inclusive com previsão de punição pecuniárias para os dirigentes em casos extremos. Para o advogado Guilherme Vinhas, os antigos contratos de gestão encontram paralelo hoje nas chamadas “agendas regulatórias” - que planejam a atividade normativa, com priorização de temas regulamentação, por exemplo.
Essas agendas são elaboradas de forma autônoma pelas entidades reguladoras. “Quando você desloca a discussão de uma agência reguladora para um ministério, você passa de uma discussão técnica para uma discussão política”, avalia Vinhas.
O que dizem os ministérios
A reportagem procurou todos os ministérios que têm vínculos com as 11 agências reguladoras do País. O Ministério da Cultura (MinC) informou que nunca teve um contrato de gestão com a Agência Nacional do Cinema (Ancine), embora o mecanismo esteja previsto na Medida Provisória 2.228-1/2001, que criou a entidade.
O Ministério de Portos e Aeroportos (MPor) disse em nota que a Lei Geral das Agências de 2019 (Lei 13.848) veio para “modernizar e consolidar diretrizes comuns” a todos os órgãos reguladores.
“Fica difícil sustentar a volta do modelo de contrato de gestão, tendo tantas camadas de governança e de controle já estabelecidas e que funcionam muito bem. Há que se perguntar em que um contrato de gestão agregaria de valor hoje à melhoria da eficiência das agências, nos moldes atuais”, disse a Pasta, em nota.
O MPor possui, dentre suas entidades vinculadas, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). A pasta defende que o modelo atual estabelecido pela lei de 2019 “dá respaldo suficiente e moderno à questão do desempenho, elemento fundamental para avaliação das atividades das agências”.
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