Crédito tem nível recorde e gasto de famílias com juros recua, apesar de críticas de Lula ao BC

Saldo dos empréstimos livres para as pessoas físicas, que não têm subsídios do governo, atinge maior patamar da série; comprometimento da renda com juros é o mais baixo desde 2022

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Foto do author Alvaro Gribel
Atualização:

BRASÍLIA – As críticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Banco Central e a visão recorrente de que o patamar da taxa básica de juros (Selic) tem limitado o crescimento da economia estão descoladas da realidade do crédito às famílias. Depois da forte deterioração provocada pela pandemia de covid-19, que aumentou o endividamento e a cautela dos bancos, os números mostram que houve uma forte melhora nas condições financeiras para os consumidores nos últimos meses.

Enquanto o saldo do crédito livre (total de recursos emprestados) atingiu 18% do PIB pela primeira vez na série iniciada em 2007, as concessões (novos empréstimos) dispararam 11,2% nos 12 meses encerrados em junho, segundo dados do BC.

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A taxa média de juros cobrada das famílias caiu 7,4 pontos porcentuais no período de um ano (de 59,1% para 51,7%), com redução de 7,2 pontos do spread (de 47,4% para 40,2%) – que mede a diferença entre a taxa que os bancos pagam para captar recursos e a taxa cobrada para emprestar aos clientes. A inadimplência também diminuiu, voltando a níveis de 2021, e o comprometimento da renda das famílias com o pagamento de dívidas – e com os juros – é o menor desde 2022.

Segundo o economista-chefe da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi), Nicolas Tingas, pelo menos três fatores explicam o bom momento do crédito às famílias. Houve recuperação de empréstimos dados como perdidos pelos bancos, criação de novos produtos financeiros, com menor risco, e uma mudança no perfil do tomador, favorecido pelas melhores condições do mercado de trabalho.

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“A condição do crédito este ano é muito melhor do que no ano passado. O balanço dos bancos está mais limpo, novos produtos financeiros foram criados e o consumo das famílias está forte. Será um dos grandes motores do PIB deste ano. A base de tomadores também aumentou, o que permitiu a expansão do crédito”, explicou.

O presidente Lula tem feito críticas constantes ao Banco Central e ao chefe da instituição, Roberto Campos Neto. No final de julho, por exemplo, afirmou que o dinheiro no País não pode ficar parado, precisa circular. “Hoje, temos o menor nível de desemprego, a inflação está controlada, só falta a gente reduzir a taxa de juros, que não depende só do governo”, disse. Também em julho, Lula afirmou que, se o dinheiro circular, o País vai crescer mais de 2,5% neste ano.

Na visão do secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Barbosa Pinto, uma parte dos números favoráveis no mercado de crédito reflete ações tomadas pela pasta, como a aprovação do projeto do Marco das Garantias, que desburocratizou e facilitou a retomada de bens inadimplentes por parte dos bancos.

'O marco das garantias foi muito importante, porque ajudou a diminuir a taxa de juros e a aumentar as concessões', afirma o secretário de Reformas Econômicas, Marcos Pinto Foto: Wilton Junior/Estadão

“O marco das garantias foi muito importante, porque ajudou a diminuir a taxa de juros e a aumentar as concessões. Os bancos estão oferecendo novas modalidades de crédito, como a que permite ao consumidor dar o próprio imóvel como garantia. Isso faz com que os juros fiquem mais baixos na ponta”, explicou Barbosa Pinto em conversa com o Estadão.

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Os financiamentos para a compra de veículos dispararam 31% nos últimos 12 meses. Olhando apenas para o mês de julho, o crédito automotivo somou R$ 16,82 bilhões, contra R$ 12,7 bilhões do mesmo mês do ano passado – uma alta de 32%.

Os financiamentos têm sido um dos pilares para a expansão do consumo das famílias, segundo o último Boletim Macro, do Ibre/FGV. No último estudo, de julho, os economistas Armando Castelar e Silvia Matos revisaram a projeção de crescimento do PIB do segundo trimestre, de 0,5% para 0,7%, em relação ao primeiro, e subiram também a estimativa para o ano, de 2% para 2,2%. Renda e crédito sustentaram a melhora.

“Pelo lado da demanda, os destaques do segundo trimestre foram os mesmos do primeiro trimestre: o consumo das famílias e o investimento. O consumo continua sustentado pelo crescimento da renda, em função de um mercado de trabalho aquecido e das políticas de transferência de renda em expansão, além das condições favoráveis do crédito às famílias”, afirmam no documento.

Pelos dados do Banco Central, a concessão de empréstimos para a aquisição de “outros bens”, ou seja, que não são veículos, subiu 12,6% no segundo trimestre, em relação ao primeiro.

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Segundo Katherine Hennings, pesquisadora associada do FGV/IBRE, o mercado de crédito tende a se expandir quando a inflação está em convergência para a meta – o que dá mais confiança aos bancos e aos consumidores.

“Se a inflação está baixa, as pessoas tendem a tomar mais crédito, porque elas não vão comprometer uma parte da renda com produtos mais caros. Há um melhor gerenciamento dos recursos pelas famílias. E os bancos passam a enxergar um ciclo de cortes da Selic pelo Banco Central”, afirmou.

Para Andrew Storfer, diretor da Associação Nacional dos Executivos de Finanças (Anefac), o mercado de trabalho também é um elemento fundamental para a melhora.

“Realmente tem sido uma surpresa, ao contrário do que se esperava, pela parte fiscal e monetária. No começo deste ano, quando o Banco Central falava em desemprego de 8%, a gente tinha estimativa de que estaria mais próximo de 7%. Agora, está em 6,9%, e há Estados como Santa Catarina e Mato Grosso com taxas na casa dos 3%”, afirmou.

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Dívidas e juros em queda

Durante a pandemia, o endividamento das famílias disparou: saiu de 41,55% da renda anual, em março de 2021, para 49,92% em julho de 2022 – o pior momento da série. De lá para cá, houve uma queda lenta, mas progressiva, para 47,5% – o menor número desde setembro de 2021.

Marcos Pinto entende que houve efeitos do programa Desenrola, que permitiu a renegociação de dívidas entre bancos e consumidores da baixa renda. Pelas estimativas da Fazenda, 15,06 milhões de pessoas renegociaram R$ 53,07 bilhões em dívidas – valor que corresponde a 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Ele também aponta o limite para endividamento no rotativo do cartão de crédito.

“O Desenrola foi muito positivo: reduziu bastante a inadimplência na faixa de renda atingida pelo programa. E teve outra medida que acho relevante que é o teto do cartão de crédito. Embora não tenha tido redução dos juros, ele pôs um limite ao endividamento, que não vira mais bola de neve – a dívida pode no máximo dobrar. Isso faz os bancos oferecerem outros produtos financeiros aos clientes, de mais longo prazo. Quem deve R$ 2 mil não vai passar a dever R$ 20 mil”, aposta.

Hennings, por sua vez, acredita que o Marco das Garantias foi positivo, embora o seu efeito sobre a economia seja mais gradual, e avalia que os ganhos do Desenrola são mais difíceis de avaliar.

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“Se ainda não houve efeito do Marco das Garantias, vai ter, é gradual, dá segurança a quem concede o crédito. E também é preciso educar o tomador, porque se ele achava que não ia perder o seu bem, agora vai perder”, explica. “No Desenrola, acho mais difícil avaliar. Há quem aposte que os bancos adotariam as medidas (de renegociação) de toda forma. Mas foi importante, porque há a propaganda do governo, chama as pessoas para irem aos bancos, que estão mais dispostos. Aí pode ter um efeito”, afirmou.

Gasto com juros em queda

Em maio deste ano, o comprometimento da renda das famílias com juros caiu ao menor patamar desde julho de 2022, com 8,98% do orçamento mensal consumido por esse tipo de despesa. Em julho de 2023, o pior momento da série, era de 9,76%.

Marcos Barbosa Pinto chama atenção para a redução de 7,2 pontos do spread bancário. Ele lembra que dois terços da composição do spread são explicados pelo risco para os bancos, a baixa concorrência do sistema financeiro nacional, o peso dos tributos e a margem das instituições. A taxa Selic, por sua vez, explica apenas um terço do spread.

“A gente concentra muita atenção nesse um terço do spread, que tem referência na Selic, e esquece de discutir o estrutural, que são dois terços. A reforma tributária vai ter um impacto muito importante sobre os impostos cobrados do setor financeiro, e medidas como o Marco das Garantias vai diminuir o risco para os bancos”, afirmou.

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O secretário explica que agora as famílias podem oferecer seus planos de previdência como garantia (cerca de R$ 1 trilhão em depósitos) – o que diminuiu o risco para os bancos. Os cartórios também passaram a atuar na cobrança de dívidas, o que acelerou o processo, antes concentrado no Poder Judiciário.

Selic em alta põe cenário em risco?

Storfer vê com preocupação o risco de o Banco Central iniciar um novo ciclo de alta da taxa Selic. Além de não ver necessidade para um novo aumento, ele teme que isso possa levar a uma queda abrupta das concessões de crédito.

“Se o Banco Central subir a taxa Selic em 0,25 ponto em setembro, e mais 0,25 na outra reunião, o crédito seca. Ele vai ser muito mais seletivo. Não dá para o sistema financeiro correr o risco de não receber. Os bancos precisam emprestar, mas vão emprestar para o governo. Os juros reais vão subir para a casa de 7%”, aposta.

Nicolas Tingas enxerga um cenário no qual o BC mantenha a Selic no patamar atual, em 10,5%, mas desde que o Fed, o Banco Central americano, comece a reduzir os juros na reunião de setembro.

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“Meu cenário indica uma probabilidade entre 60% a 70% de manutenção da Selic em 10,5%. Ninguém, no fundo, quer uma subida dos juros. Se der para evitar, melhor. Agora, o importante é que, se realmente precisar subir os juros, tem que subir, mesmo que isso acenda um alerta de cautela importante nos bancos”, defende.

Pinto avalia, por outro lado, que a aprovação dessas medidas estruturais são uma espécie de anteparo em caso de um novo ciclo de alta.

“Aprovamos medidas estruturais que terão impacto sobre o spread. São medidas que vieram para ficar e atenuariam esse impacto”, afirmou.

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