O Climate Policy Initiative (CPI), organização afiliada à PUC-Rio e focado em estudos sobre meio ambiente e políticas públicas, avaliou a relação entre o destino do crédito subsidiado para propriedades rurais e o desmatamento.
Utilizando bases de dados públicas como o desmatamento captado por satélite pelo sistema Prodes (Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cruzadas com bases de dados do Banco Central (BC) e do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), os pesquisadores apuraram que propriedades rurais onde houve desmatamento receberam cerca de R$ 14 bilhões por ano em créditos subsidiados pelo governo federal entre 2020 e 2022. O Ministério da Agricultura questiona a metodologia e contesta “que o crédito rural subsidia o desmatamento”, enquanto órgãos de fiscalização ressaltam que há bloqueio de empréstimos quando há inconsistências (leia mais abaixo).
Conforme a pesquisa, do total das propriedades com desmatamento analisadas, 31% conseguiram subsídio, mostra a pesquisa. O período foi escolhido porque a partir de 2019 se tornou obrigatório declarar o cadastro ambiental rural (CAR) ao buscar o crédito subsidiado, o que permitiu alimentar as bases de dados utilizadas, o Sistema de Operações de Crédito Rural e do Proagro (Sicor) do BC e o Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) do MGI.
Os dados do desmatamento de 2023 ainda não foram totalmente divulgados, por isso não aparecem no levantamento. A pesquisa não conseguiu avaliar se o desmatamento foi realizado legalmente, com autorização dos órgãos competentes, ou se é fruto de atividade criminosa.
A destinação de crédito subsidiado para propriedades com desmatamento se concentra em um número pequeno de imóveis rurais de grande extensão, segundo os autores. Apenas 7% das 874 mil propriedades que receberam empréstimos com juros reduzidos realizaram desmatamento, com uma grande concentração nas de maior área. Os 5% das maiores propriedades recebedoras de crédito rural subsidiado (43.700 imóveis) respondem por 74% da perda de vegetação associada à concessão.
Nos anos abrangidos pelo levantamento, a área total desmatada no Brasil foi de 22,8 mil km² em 2020, 25,9 mil km² em 2021 e 28,3 mil km² em 2022, segundo dados do Prodes. Em 2023, ainda não foram calculadas as áreas desmatadas em todos biomas — faltam Caatinga e Pampa — mas, com Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e Pantanal, os números chegam a 20,1 mil km².
O Banco Central e os ministérios da Agricultura e da Fazenda afirmaram ao Estadão que já existem regulações para evitar a destinação de crédito para quem pratica crimes ambientais, assim como incentivos para a produção sustentável.
Em seu relatório de Riscos e Oportunidades Sociais, Ambientais e Climáticos (RIS) de 2024, O BC cita que 1.235 tentativas de registro de operações no valor de R$726 milhões foram bloqueadas até agora neste ano por problemas como o CAR suspenso. Desde 2020, foram 2.230 operações, com valor total de R$ 1,04 bilhão. Outras 30.609 tentativas de registro com inconsistências relativas ao CAR, tais como área do empreendimento fora do cadastro ou com o respectivo território registrado sem relação com a área do empreendimento, não puderam ser realizadas, no valor total de R$6,3 bilhões.
O Sicor registra todas as operações de crédito rural e as instituições financeiras autorizadas a realizá-lo. Segundo o BC, ele tem impacto no impedimento de operações no momento da contratação, caso haja problemas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) ou inconsistência nos dados como data de colheita anterior à data de plantio.
O CAR é um registro público e obrigatório da área ocupada pela propriedade, usado para controle, monitoramento e planejamento ambiental e econômico. Contudo, ele não é automaticamente validado, e pode acabar se sobrepondo a áreas de conservação ou a territórios indígenas e quilombolas. Segundo resolução de 2023 do Conselho Monetário Nacional (CMN), imóveis rurais que tenham o CAR analisado e validado sem problemas como a sobreposição tem 0,5% de “desconto” nos juros.
Proposta
Segundo os autores do estudo, destinar crédito subsidiado para propriedades que desmatam, ainda que legalmente, é uma política pública ruim. “A gente acaba usando recurso público para incentivar um tipo de agropecuária baseada em expansão de área e desmatamento”, afirma João Mourão, analista do CPI/PUC-Rio.
A principal proposta do estudo é que o crédito subsidiado, com juros abaixo dos normais do mercado, não seja destinado para quem retirou vegetação nativa, ainda que com autorização. Caso o desmatamento tenha sido legal, o crédito estaria disponível para o produtor, mas sem os subsídios.
Por outro lado, as propriedades que se sobrepõem a territórios protegidos são inteiramente embargadas, não importando se apenas uma pare pequena esteja nas áreas de conservação, e não podem receber crédito rural, subsidiado ou não. O impedimento para o crédito é válido para todo o País desde o início de 2024 — anteriormente era apenas para a Amazônia.
Mourão, analista do CPI/PUC-Rio, ressalta que houve avanços nos impedimentos feitos pelo CMN e pelo Banco Central no período analisado pelo estudo.
Monitoramento
Fortalecer o monitoramento é mais uma recomendação para que, em caso de desmatamento, seja possível solicitar documentação que prove a legalidade antes mesmo da concessão do crédito.
“O que pode ser feito é pedir as autorizações para as propriedades que realizam desmatamento e pedem crédito, e incorporar ferramentas na análise como o Prodes e o MapBiomas Alerta”, projeta Mariana Stussi, analista do CPI/PUC-Rio.
O MapBiomas é uma rede colaborativa formada por ONGs, universidades e empresas de tecnologia que também analisa dados de todos os biomas. “A gente quer incentivar um modelo de agropecuária que não abra novas áreas”, resume Stussi.
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Com a incorporação dos dados do Prodes, por exemplo, o BC poderia fazer alertas com mais agilidade ao setor privado sobre quais propriedades podem ou não receber o crédito. As entidades financeiras também podem incorporar essas ferramentas por conta própria, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) faz desde 2023, em parceria com a organização MapBiomas Alerta.
Prêmio para práticas corretas
Outro ponto ressaltado pelos pesquisadores é a necessidade de “premiar” quem age de maneira correta, com práticas ambientalmente sustentáveis. Para isso, dizem ser necessário identificar quais são essas maneiras de produzir que protegem o meio ambiente, processo que está em andamento.
Um passo fundamental é o lançamento de uma “taxonomia verde”, um relatório útil justamente para indicar boas práticas que podem ser aplicadas em diversos setores e orientar produtores sobre como colocá-las em prática e investidores a procurarem quem as realiza. Documentos assim já foram lançados pela União Europeia, pelo México e pela Colômbia, e a edição brasileira está em discussão em uma comissão formada por 22 ministérios e cinco entidades do sistema financeiro federal.
“A intenção é construir uma taxonomia que possa analisar a propriedade como um todo, para dizer se o imóvel é sustentável e garantir que o que sai dele é sustentável”, menciona Gilson Bittencourt, subsecretário de Política Agrícola e Negócios Agroambientais do Ministério da Fazenda. Alguns incentivos já foram aprovados, como descontos para pequenos e médios produtores que adotem práticas ambientais corretas e vendam produtos ligados à sociobiodiversidade ou com produção orgânica.
Uma inovação pensada para a taxonomia brasileira é a adoção de “recompensas” para quem já adotava boas práticas (como financiar a recuperação de pastagens degradadas) antes dela entrar em vigor. “Se a pessoa já fez, como facilitar para pagar mão de obra, comprar ração para o gado? Se a propriedade já fez o processo e recebeu o selo de sustentável, poderia vir a captar com juro menor, e sua produção ter o reconhecimento de sustentável”, projeta Bittencourt.
Ele lembra que, além das mudanças na legislação e outras normas brasileiras, os próprios consumidores e entidades como a União Europeia também têm feito pressão por uma produção mais sustentável, como um banimento de produtos de oito cadeias que venham de áreas desmatadas após 2020 — entre elas, milho e soja.
A participação do setor privado é vista como importante para também incentivar as boas práticas. “A primeira coisa é certificar que não estão emprestando para ninguém que tenha desmatamento legal”, cita Mourão.
Contestações
Os ministérios da Agricultura, da Fazenda, do Meio Ambiente e o Banco Central destacaram ao Estadão as legislações e normas já aprovadas para evitar a concessão de crédito subsidiado a desmatadores.
O Ministério da Agricultura afirmou que há duas conclusões errôneas no estudo: a de que o crédito rural subsidia o desmatamento e de que o financiamento é concedido para quem desmata ilegalmente, o que não pode ser garantido pela metodologia, citando os impedimentos que já existem.
Em resposta, os autores afirmaram que a intenção não era de indicar o cometimento de crimes, e sim discutir políticas públicas. “Embora o estudo tenha uma seção dedicada a analisar a sobreposição do desmatamento identificado com o novo impedimento de crédito a propriedades com embargos ambientais por desmatamento, o texto explicita claramente que a medida não estava em vigor no período analisado. O relatório revela que os resultados seriam pouco alterados fosse este o caso e que a nova medida é, portanto, limitada em desassociar o crédito do desmatamento”, cita Stussi.
Já o Banco Central questionou a conclusão de que o aumento na produção brasileira deriva da expansão das terras usadas para agricultura, demonstrando que o valor produzido por hectare no Brasil cresceu acima da média mundial entre 2001 e 2021 — houve aumento de 87,7% na produtividade brasileira por hectare e 51,7% no mundo.
Os pesquisadores avaliaram que há um grande estoque de terras já desmatadas que produzem menos do que poderiam. “Estimativas apontam que podemos duplicar a produção nas áreas existentes, então não há sentido utilizarmos recursos do contribuinte para aumentarmos a área disponível”, diz Juliano Assunção, diretor executivo do CPI.
O Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (MMA) mencionou as ações que já haviam sido relatadas pelas outras pastas e citou iniciativas recentes como o Programa Nacional de Conversão de Pastagens Degradadas em Sistemas de Produção Agropecuários e Florestais Sustentáveis, liderado pelo Ministério da Agricultura em parceria com o MMA, e o lançamento de planos para prevenção do desmatamento na Amazônia e no Cerrado, sendo que planos com a mesma finalidade para os demais biomas brasileiros devem ser lançados ainda em 2024. O Estadão procurou ainda a Confederação Nacional da Agricultura, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
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