Publicidade

‘Dólar Coldplay’ e inflação de 83%: Entenda a crise na Argentina

País sofre com escassez da moeda americana e governo não tem credibilidade para adotar um plano de estabilização econômica

PUBLICIDADE

Foto do author Luciana Dyniewicz
Atualização:

A notícia de que a Argentina criou o “dólar Coldplay” e o “dólar Catar” ganhou destaque na internet e atraiu a atenção dos brasileiros. A adoção de cotações mais elevadas para a moeda americana para atividades não essenciais é uma tentativa do governo argentino de controlar o acesso à divisa em meio à escassez de dólares no país.

PUBLICIDADE

A medida veio em um momento em que as expectativas em relação à economia argentina voltam, mais uma vez, a se deteriorar – menos de três meses após o político Sergio Massa chegar ao Ministério da Economia. Massa assumiu como ministro no fim de julho, após a demissão da ex-ministra Silvina Batakis, que, 24 dias antes, havia substituído o ex-ministro Martín Guzmán.

“(Em julho), a Argentina estava à beira do precipício. Com Massa, foi como se nos afastássemos uns três passos desse precipício”, diz o economista argentino Andrés Borenstein, da consultoria EconViews.

Desde que passou a liderar a pasta, o político fez um reperfilamento da dívida em pesos, adiando datas de vencimento. Isso garantiu acesso a novos financiamentos internos, apesar de eles virem com taxas de juros mais altas.

“Ele conseguiu atenuar a crise cambial e financeira. O governo estava quase sem acesso ao mercado (financeiro). Massa adotou micro medidas fiscais e conseguiu um pouco de financiamento em dólares e pesos. O risco não desapareceu, mas a expectativa melhorou um pouco – ainda que tenha voltado a piorar recentemente”, acrescenta o economista Dante Sica, sócio da consultoria Abeceb e ministro da Produção do governo Mauricio Macri.

Sergio Massa, ministro da Economia da Argentina, renegociou parte da dívida em pesos, mas, com governo desunido, não tem força para fazer um plano de estabilização Foto: Matias Baglietto/Reuters - 03/08/2022

Massa congelou parte dos gastos e anunciou um aumento nas tarifas de luz e gás (que hoje contam com subsídios governamentais), na tentativa de ajustar as contas públicas. Parte dessa alta nas tarifas, no entanto, foi recentemente postergada.

Em setembro, o ministro criou o “dólar soja”. Como os agricultores estavam retendo a produção enquanto esperavam uma desvalorização do peso, o governo estabeleceu que o dólar negociado na exportação de soja valeria 30% a mais. Assim, estimulou exportação e, consequentemente, a entrada de dólares no país, aumentando as reservas do Banco Central.

Publicidade

A falta de reservas é um dos grandes entraves do país. Sem acesso a crédito no mercado internacional por causa dos vários calotes e da desconfiança dos investidores, a Argentina não consegue acumular divisas.

Antes de Massa assumir, as reservas líquidas eram praticamente nulas. Hoje, após a criação do “dólar soja” e depois de um empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), elas se aproximam de US$ 5 bilhões, segundo cálculos de especialistas. Ainda é um nível bastante baixo, avalia o economista Guido Lorenzo, da consultoria argentina LCG, mas ao menos é um patamar suficiente para manter as importações necessárias para a economia funcionar.

Também por conta do problema do baixo nível de reservas, surgiram o “dólar Catar” e o “dólar Coldplay”. Mais caros que o “dólar padrão”, eles dificultam o acesso da população ao câmbio, numa tentativa do governo de manter dólares para pagar, por exemplo, a importação de energia.

Para os analistas, o plano econômico de Massa era basicamente lançar mão de medidas que evitassem a hiperinflação e o calote. Na visão de Borenstein, era um plano para fazer o país sobreviver até as eleições presidenciais, marcadas para o último trimestre de 2023.

PUBLICIDADE

O problema agora é que a expectativa de que Massa teria apoio da vice-presidente Cristina Kirchner foi diluída. Em agosto, quando o país estava à beira do caos, Cristina deu carta branca para o ministro. Agora, com a situação um pouco menos descontrolada, ela voltou a trabalhar como se fosse da oposição e a criticar publicamente a inflação, explica Borenstein.

Inflação de 83%

Nos últimos 12 meses até setembro, a inflação na Argentina teve alta de 83%. No acumulado do ano, chega a 66%. O país costuma emitir moeda para bancar seu déficit fiscal, o que gera inflação. Neste mês, Cristina pediu uma intervenção do governo “mais precisa” para controlar os preços, porque as empresas de alimentos “aumentaram muito suas margens de rentabilidade”.

O país já adota, há quase dez anos, o programa “Preços Cuidados”, em que o valor de produtos tidos como essenciais é reajustado pelo governo após negociação com associações de supermercados. Agora, a discussão no país gira em torno da impressão dos preços nos rótulos das embalagens, para garantir que os varejistas não cobrem mais que o valor fixado pelo programa.

Publicidade

“Havia uma expectativa de que o novo ministro teria mais apoio de Cristina. Isso foi se perdendo recentemente. A ausência de medidas mais consistentes, que pudessem melhorar as expectativas de médio prazo, também prejudicou”, acrescenta Borenstein.

Para o economista Livio Ribeiro, especialista em economia internacional do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Ibre), a adoção de medidas mais concretas e de um plano de estabilização na Argentina será algo difícil de se fazer enquanto o ambiente político for instável. “Por enquanto, não há plano de reorganização econômica. A ideia é sempre ganhar tempo. Mas o país está nesse ciclo há 25 anos, com pequenos interlúdios.”

Os economistas convergem na ideia de que não é possível implementar um plano de estabilização agora, dado que ele não teria credibilidade, com as divisões que há no próprio governo. O presidente Alberto Fernández está desacreditado há meses – seu nome para o Ministério da Economia (Guzmán) caiu em julho com a ajuda de Cristina Kirchner. Diante desse cenário, Massa vai empurrando a economia “com a barriga”, como diz Sica, da Abeceb.

Por enquanto, apesar da inflação nas alturas, a economia tem avançado com a retomada da atividade no pós-pandemia – o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima alta de 4% no PIB deste ano. O nível de emprego vem se recuperando, mas com grande parte da população no mercado informal.

Essa recuperação, no entanto, começa a perder fôlego e há sinais de que 2023 pode ser ainda mais difícil não só pela deterioração econômica global, mas também pelas condições climáticas. Com a seca, a colheita de trigo, que começa em dezembro e segue até fevereiro, deve ser 30% menor do que o projetado. Isso significa um volume menor para exportar e, consequentemente, menos dólares na economia.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.