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Crise fiscal foi empurrão final para Independência do Brasil, defendem pesquisadores em livro

Despesas militares e gastos com manutenção da Corte portuguesa no Rio causaram rombos no orçamento, atrasos de salários e inflação, segundo o livro ‘Adeus, senhor Portugal’

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Atualização:

RIO – Uma crise fiscal deu o impulso final para a Independência do Brasil, sustentam o jornalista Rafael Cariello e o professor Thales Zamberlan Pereira, no livro Adeus, senhor Portugal (Companhia das Letras), nas livrarias desde a semana passada. Ao recontar a história da emancipação política, 200 anos depois, os autores inserem, como crucial, a crise econômica. As turbulências do início dos anos 1820, documentadas pelos observadores das ruas do Rio de Janeiro, capital do então Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves, se inserem no contexto mais amplo das crises das monarquias absolutistas que se se espalharam pela Europa desde fins do século 18, mas logo ganharam particularidades brasileiras, como o bloqueio das tentativas de abolir a escravidão e a gastança do governo.

“O Brasil nasceu de uma crise fiscal. Seu pai foi o déficit. Sua mãe, a inflação”, escrevem Cariello e Pereira, no primeiro capítulo do livro. “Quase todas as grandes crises políticas profundas, que geraram mudanças institucionais no Brasil, como golpes e distensões, incluindo o golpe (militar) de 1964, a transição da ditadura para a democracia (no início dos anos 1980) e a crise de Dilma Rousseff, que sofreu impeachment, em 2016, tiveram origem em crises econômicas com uma raiz fiscal”, disse Cariello ao Estadão, ao traçar paralelos entre o cenário atual e o de 200 anos atrás.

O economista Thales Zamberlan Pereira (esquerda) e o jornalista Rafael Cariello são os autores de 'Adeus, senhor Portugal' Foto: Alex Silva/Estadão

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É um círculo vicioso de crises, que o economista Fernando de Holanda Barbosa, professor da EPGE, a escola de economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio, também associou, em obra lançada no início deste ano, à “nossa tradição ibérica, patrimonialista”. Agora, o livro de Cariello e Pereira parece ter puxado o fio desse círculo vicioso, voltando no passado até o nascimento do País.

Duzentos anos atrás, d. João VI, que chegou ao Rio em 1808, representava a crise em si. Conforme contam Cariello e Pereira, desde meados da década de 1810, a grave crise econômica vinha se traduzindo em insatisfação dos súditos do reino com o monarca. O destaque de Adeus, senhor Portugal é a compilação de dados econômicos e financeiros disponíveis na época e de relatos de observadores sobre o clima de insatisfação com a economia naqueles dias.

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Estima-se que, ao longo dos seus poucos anos de residência no Rio de Janeiro, d. João tenha criado mais marqueses, condes, viscondes e barões do que todos os sucessivos monarcas da Casa de Bragança, em Portugal, entre meados do século 17 e o fim do 18.”

Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira, autores de 'Adeus, senhor Portugal'

Elevação dos gastos militares

Assim como ocorreu em várias monarquias absolutistas da Europa na virada do século 18 para o 19, o principal motivo para o rombo orçamentário da Coroa portuguesa foi a elevação dos gastos militares, na tentativa de expulsar as tropas francesas que invadiram Portugal em 1807, durante as Guerras Napoleônicas, mas também houve gastança. Saltava aos olhos dos observadores que circulavam pelo Rio uma “sucessão de festividades que não custaram pouco aos cofres públicos” para marcar aniversários e casamentos dos membros da família real. Ao mesmo tempo, a distribuição de títulos de nobreza conferia “vantagens materiais” à elite econômica.

“Estima-se que, ao longo dos seus poucos anos de residência no Rio de Janeiro, d. João tenha criado mais marqueses, condes, viscondes e barões do que todos os sucessivos monarcas da Casa de Bragança, em Portugal, entre meados do século 17 e o fim do 18. Era preciso, afinal, ganhar ou reforçar a lealdade das elites locais para a Corte recém-instalada”, escrevem os autores.

Para tapar os rombos nas contas, a Coroa tomava empréstimos junto ao Banco do Brasil e ampliava a cunhagem de moedas. Entre 1817 e 1820, “as transferências do banco representaram impressionantes 34% da receita do governo”, escrevem Cariello e Pereira. Já o aumento da emissão monetária fomentou a inflação. Entre 1815 e 1819, o preço da carne seca triplicou, enquanto o da farinha de mandioca dobrou, citam os autores.

Um dos principais argumentos da obra é que, embora a difusão das ideias liberais a partir da Inglaterra e da França, do século 18 em diante, fosse condição necessária para os movimentos de independência das colônias europeias nas Américas, não era suficiente. A insatisfação popular, e não apenas das elites, manifestada em revoltas em cidades de Portugal e do Brasil, deu o empurrão final. Praticamente expulso do País no início de 1821, d. João VI voltaria a Lisboa para se submeter à formação de uma monarquia constitucional. Seu primogênito, d. Pedro I, ficaria como príncipe-regente até liderar a Independência, no ano seguinte, mas tampouco conseguiria resolver a crise econômica, contam Cariello e Pereira.

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O interesse das elites em manter o modelo econômico baseado na mão de obra escravizada no processo também vem sendo destacado como uma particularidade da emancipação do Brasil, tanto em trabalhos lançados por conta do bicentenário da Independência quanto por acadêmicos. O Projeto Querino, produção multimídia que inclui reportagens e podcasts, cita a manutenção da escravidão como um dos fatores a amalgamar interesses das elites regionais da colônia em torno de um governo central independente, no Rio. Em artigo publicado no início de agosto no jornal O Público, de Lisboa, o historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor da EESP, escola de economia da FGV em São Paulo, sustenta que a emergência do Império do Brasil em 1822 freou princípios abolicionistas das revoluções liberais, como uma “contrarevolução”.

Apesar dessas interpretações, Cariello e Pereira não veem a escravidão como central nas crises econômica e política que levaram à Independência. No fim do livro, os autores destacam o paradoxo da continuidade da escravidão em meio a um movimento de origens liberais, mas sustentam que a Independência trouxe avanços. A escravidão seguiu como uma “mácula indelével”, nas palavras de Cariello. Para Pereira, a manutenção do modelo escravocrata por décadas após a Independência resultou na elevada desigualdade socioeconômica brasileira. Desigualdade que ecoa no sistema tributário, que cobra menos em impostos diretos, sobre a propriedade, e mais em impostos indiretos, sobre os bens, que pesam mais sobre os mais pobres.

“Nos Estados Unidos, mesmo com a escravidão, há evidência de que a desigualdade de renda era muito mais baixa. A estrutura fiscal americana se desenvolveu ao longo do tempo de forma completamente diferente, sobre impostos diretos e sobre a propriedade, o que permitiu uma certa estabilidade fiscal para os Estados Unidos, o que não aconteceu no Brasil”, disse Pereira.

Crise fiscal, de novo

Duzentos anos depois, o Brasil de hoje segue preso numa crise econômica com raiz em problemas fiscais. “Quando tem um problema fiscal grave, em geral, a inflação é a solução tradicional nossa quando não conseguimos fechar as contas. Essa inflação gera insatisfação popular, o que, em geral, move a mudança política. Isso aconteceu em 1964, aconteceu no início da década de 1980, voltou a acontecer novamente na última década e parece que está acontecendo agora de novo”, afirmou Cariello.

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Por que (o presidente Jair) Bolsonaro está com dificuldade de ser reeleito? Porque a inflação está alta. Independentemente de ele ser culpado ou não pela inflação estar alta, a sociedade o responsabiliza por isso.”

Samuel Pessôa, economista

Para Samuel Pessôa, sócio da gestora de recursos Julius Baer Family Office e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV, no cenário atual, “o problema fiscal continua”, mas talvez já não seja mais tão grave. Desde o fim do governo Dilma, “houve uma melhora estrutural” nas contas públicas, segundo Pessôa, por causa de três fatores que permitiram conter o aumento dos gastos públicos. O primeiro é a reforma da Previdência. O segundo, o menor reajuste do salário mínimo – indexador para uma séria de programas sociais. O terceiro fator é a contenção do gasto com pessoal – a informatização de alguns serviços tem permitido evitar parte das reposições de servidores aposentados e os salários não têm sido reajustados.

O economista Samuel Pessôa vê melhora da questão fiscal no País desde o fim do governo Dilma Foto: Hélvio Romero/Estadão

Apesar do meio caminho andado, o próximo governo federal, seja quem for o presidente eleito, “vai ter que dizer para a sociedade como pretende tapar, ao longo do tempo, o buraco fiscal que ainda existe”. Pessôa reconhece que propostas para equilibrar as contas do governo não serão debatidas durante a campanha eleitoral, porque o tema é “difícil de ser tratado e aborrecido” e não ganha votos, mas está otimista de que o ajuste será feito.

“Se não fizer, a inflação vai voltar, e o político será penalizado, será visto pela sociedade como responsável pela volta da inflação. Por que (o presidente Jair) Bolsonaro está com dificuldade de ser reeleito? Porque a inflação está alta. Independentemente de ele ser culpado ou não pela inflação estar alta, a sociedade o responsabiliza por isso”, afirmou ao Estadão o pesquisador da FGV, que participou de um debate para marcar o lançamento de Adeus, senhor Portugal em São Paulo, na segunda-feira, 5.

Apesar do otimismo, a tarefa de “tapar o buraco” não parece simples. Pessôa calcula que o rombo nas contas do governo está entre R$ 200 bilhões e R$ 250 bilhões ao ano. Ao analisar as crises fiscais mais recentes do ciclo vicioso da economia brasileira, Fernando de Holanda Barbosa identificou a elevação de tributos como um ponto em comum das soluções adotadas – e, para o professor, inevitável como melhor saída para a crise atual.

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A boa notícia, conforme Pessôa, é que a solução não precisa ser imediata. É possível apresentar um plano de ajuste ao longo de quatro anos. O prazo relativamente confortável, de acordo com o pesquisador da FGV, se deve a uma particularidade, agora positiva, da crise fiscal atual: a economia brasileira hoje é mais “normal” e não há desequilíbrios nas contas externas, diferentemente das turbulências das décadas de 1960 e 1980. Com pouca dívida pública externa e um montante considerável de reservas cambiais, altas das cotações do dólar não explodem o endividamento total do País.

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