Nascido no dia 1º de maio de 1928 em São Paulo, Antônio Delfim Netto morreu nesta segunda-feira, 12, aos 96 anos. Um dos mais influentes economistas do país, ele foi professor na USP e ocupou cargos públicos. Foi secretário da Fazenda à época da gestão do governador Laudo Natel, em São Paulo, além de ministro do regime militar nos governos dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo, embaixador e deputado federal.
Ao longo da vida ele ficou mais conhecido sem o prenome Antônio, dado pelo avô. Quando criança, Delfim Netto morou com os pais na casa de um de seus avós. Estudou sempre em colégios públicos e queria ser engenheiro, porém, desistiu e fez o curso de contador. Foi assim que ele conseguiu entrar na USP e ser um dos maiores expoentes de sua área. Confira abaixo a trajetória do economista em cinco pontos.
Descendente de imigrantes italianos
Em entrevista à pesquisadora Elisa Klüger, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), Delfim Netto contou que seus quatro avós eram imigrantes italianos. Eles chegaram ao país “logo depois da libertação dos escravos e nunca trabalharam nas lavouras. As mulheres obviamente não trabalhavam. [Os homens] foram trabalhadores urbanos”, disse o economista em entrevista feita por Elisa em 2017.
Ainda segundo a entrevista, o avô paterno de Delfim Netto deixou a Calábria no final do século XIX, e veio para São Paulo. Ele atuava como calceteiro de ruas para a prefeitura. Depois, se tornou dono de uma das minas de pedras que forneciam os paralelepípedos com os quais a prefeitura fazia o calçamento. Já o avô materno era marceneiro. Seu pai, José Delfim, trabalhava como escriturário na Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC, atual SPTrans), e a mãe era costureira. Seus pais estudaram apenas o primário.
Após se casarem, os pais de Delfim Netto preferiram ficar na casa do avô, no Cambuci. Só depois é que eles se mudaram para um sítio na Vila Carrão, na zona leste. Ele sempre estudou em colégios públicos. Na infância, cursou o grupo escolar Oscar Thompson, e, na adolescência, o Instituto Liceu Siqueira Campos, ambos no Cambuci. Delfim Netto também se formou em contabilidade na Escola Técnica de Contabilidade Carlos de Carvalho, na Liberdade. Em entrevista à Câmara dos Deputados, ele disse que começou a trabalhar aos 14 anos, como office-boy, na companhia Gessy.
Carreira na USP
Delfim Netto disse que seu desejo mesmo era o de ser engenheiro. “Mas era muito difícil de fazer engenharia, porque o curso era de tempo integral. Eu decidi, então, procurar o refúgio de todo brasileiro: um emprego público. Naquele tempo, o expediente era de meio dia, o que me permitia frequentar a universidade”, relembra, em entrevista à Câmara dos Deputados.
Ele disse que entre 1946 e 1947, foi permitido aos contadores prestar vestibular na USP. Foi aí que ele escolheu o curso de economia, que frequentou de 1947 a 1952, ano em que se formou. Ao mesmo tempo, também passou num concurso para trabalhar no DER (Departamento de Estradas de Rodagem). Logo em seguida foi professor assistente e, depois, fez seu doutorado, e tornou-se catedrático em 1958.
Segundo Hugo Garbe, professor de Ciências Econômicas do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Delfim Netto se destacou por sua habilidade em simplificar conceitos econômicos complexos e torná-los aplicáveis na vida real.
Em nota sobre o falecimento de Delfim Netto, Carlos Gilberto Carlotti Junior, reitor da USP. lembrou que há 11 anos Delfim Netto doou seu acervo de mais de 100 mil livros e 90 mil revistas, incluindo obras históricas com livros originais de Adam Smith e John Keynes, para a Biblioteca da FEA. “Junto com o riquíssimo acervo, ele também doou seu mobiliário, criando um espaço que reproduz sua sala de leitura. Segundo o próprio Delfim, o gesto foi uma retribuição e gratidão por tudo que a Universidade lhe proporcionou ao longo de sua carreira”, diz a nota da universidade.
Ministro do milagre econômico
Em 1966, além da USP, Delfim Netto também atuava como assessor da Associação Comercial. Foi lá que conheceu Laudo Natel, que era vice-governador, e que o convidou para ser secretário da Fazenda. “Um dia, o Rui Gomes de Almeida, que era presidente da Associação Comercial, me disse: “O presidente Costa e Silva está precisando de alguém que faça uma exposição sobre agricultura”. Minha especialidade era café. Eu havia trabalhado com café desde bem mocinho, com gente que entendia do assunto, e me dispus a fazer essa palestra. Fui ao Rio, fiz a palestra sobre agricultura em geral, o problema da reforma agrária, que já naquele tempo se faziam as mesmas reivindicações de hoje. Foi tudo muito agradável”, lembrou, em entrevista à Câmara dos Deputados.
Segundo Delfim Netto, certo dia ele estava sentado em seu gabinete na Secretaria da Fazenda quando recebeu a visita do coronel Andreazza (Mário David Andreazza, ministro dos governos Costa e Silva e Médici). “Ele [Andreazza] era portador de uma carta do presidente Costa e Silva me convidando para ser Ministro da Fazenda”, disse. Delfim Netto diz que nunca teve relação alguma com o general, porém, ficou muito feliz e aceitou o convite.
Leia também
Foi durante a gestão de Delfim Netto na Fazenda que o país viveu o chamado “milagre econômico” (1968 a 1973). “É preciso fazer o bolo crescer para depois dividir”, era um de seus mantras. Com a liderança de Delfim, as taxas de crescimento do país chegaram a mais de 10% ao ano, resultando em mais empregos e aumento do consumo. “Ele [Delfim] foi o arquiteto de políticas que incentivaram a indústria, aumentaram os investimentos em infraestrutura e mantiveram a inflação sob controle. As grandes obras de infraestrutura que surgiram nessa época, como estradas e hidrelétricas, são, em grande parte, frutos das decisões de Delfim Netto”, lembra Hugo Garbe, do Mackenzie.
O professor lembra porém que, como em qualquer história de sucesso, havia um preço a pagar. “O crescimento econômico também trouxe consigo problemas. As políticas que Delfim implementou resultaram em um aumento na desigualdade social e em uma crescente dívida externa. Muitas pessoas começaram a sentir que os benefícios do ‘milagre’ não estavam sendo distribuídos de forma justa. A concentração de renda e o endividamento se tornaram fardos que o Brasil carregaria por muitos anos”, avalia.
Segundo o docente de ciências econômicas, nos anos 1980, época em que o Brasil enfrentou uma série de crises econômicas, as críticas às políticas de Delfim se intensificaram. “Muitos apontaram que o rápido crescimento havia sido construído a partir de bases frágeis, que não suportaram as turbulências econômicas que se seguiram”, diz.
Assinou o AI-5
Ministro civil do regime militar, Delfim Netto participou da reunião que decidiu e decretou o AI-5. O Ato Institucional número 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, foi o mais contundente dos 17 atos decretados durante a ditadura. O AI-5 estabeleceu várias medidas de repressão, que incluíram o fechamento do Congresso, o fim do habeas corpus para presos políticos, e a censura.
Ao comentar o assunto ao repórter José Maria Mayrink e ao cineasta Camilo Tavares nas filmagens do documentário “Estranhos na Noite, Mordaça no Estadão em tempos de censura”, sobre a censura ao Estadão na ditadura militar, Delfim disse que o assinaria de novo.
“Quando houve o Ato 5, do qual participei, e sempre continuo dizendo que, se as circunstâncias fossem as mesmas que eu vi e o futuro fosse conhecido, continuasse opaco como ele é, eu votaria como votei naquele momento”, reiterou, em entrevista ao Congresso Nacional. Ele negou, porém, que tenha exigido mais restrições. “O que eu disse, e está escrito com todas a letras, é que eu queria aproveitar aquilo que estava acontecendo para completar as reformas que faltavam. E foi realmente o que aconteceu”, afirmou Delfim.
Ele disse que, assim que o AI-5 saiu, foi possível fazer uma “enorme mudança no Sistema Financeiro Brasileiro. Esse, sim, foi um fator muito importante para a continuidade do crescimento”, avalia. Para o economista, o decreto possibilitou que tais mudanças pudessem ser feitas de forma muito mais rapidamente do que se tivessem que passar pelo Congresso (se estivesse funcionando, o que não estava). “O que eu queria era usar aquela oportunidade para fazer algumas coisas econômicas que ainda não tinham sido feitas, e que foram feitas”, disse Delfim, segundo relato à Câmara dos Deputados.
Endosso à Carta ao Povo Brasileiro de Lula
A aproximação de Delfim Netto e Lula, costurada havia alguns anos, se tornou mais aparente no início do século 21, com o elogio, feito por Delfim, à “Carta ao Povo Brasileiro”, documento lançado pelo petista durante a campanha de 2002 à presidência, em que ele acenou diálogo com diversos setores produtivos da sociedade. Isso, à época, foi visto como uma preocupação não só com a justiça social, mas também com o mercado interno e externo.
Ao vencer as eleições presidenciais em 2002, após derrotas em 1989, 1994 e 1998, aliados do petista procuraram conselheiros, e Delfim Netto foi um deles. Então deputado federal, o economista já tinha passagens como ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento, além de ter sido embaixador. No governo petista, teve um assento no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, indicou pessoas próximas para cargos em estatais, foi conselheiro da Empresa Brasil de Comunicação e cogitado diversas vezes para ser ministro.
Segundo Fábio Andrade, economista e cientista político da ESPM, algumas variáveis ajudam a explicar a relação entre os dois, que teve início entre 1998. “O primeiro laço de aproximação foi quando o PT se aproximou do empresariado, e o empresariado sempre se consultou com Antonio Delfim Netto. Sempre, desde sempre”, diz. “O escritório dele [Delfim] no Pacaembu [zona oeste de São Paulo] sempre foi muito bem frequentado por pessoas muito relevantes do empresariado paulista e brasileiro.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.