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Análise|Delfim, homem de ação e de livros

Nem sempre lembrado como pioneiro na flexibilização do câmbio e como reformador do comércio externo, Delfim Netto deixou legado mais amplo do que indicam alguns admiradores e menos feio do que dizem os críticos

Foto do author Rolf Kuntz
Atualização:

Criado por Jô Soares como caricatura do ministro Antônio Delfim Netto, o Dr. Sardinha combinava duas impropriedades. Sardinha é peixe, enquanto delfim, ou golfinho, é mamífero. Além disso, o bordão recitado pela figura caricata – “meu negócio é número” – era um tanto enganador. Ex-professor de econometria, o ministro entendia de economia agrícola, e sua tese de livre-docência tratava do café. Mas a personagem era divertida, assim como era bem-humorado o titular, em diferentes governos, dos ministérios da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento.

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Delfim ganhou notoriedade como secretário da Fazenda, em São Paulo, durante o governo de Laudo Natel. Ficou pouco tempo na secretaria. Foi chamado para cuidar das finanças federais no governo do presidente Costa e Silva. Havia condições para a retomada do crescimento, depois de eliminado o risco de hiperinflação pela dupla Roberto Campos-Octávio Gouvêa de Bulhões, na presidência do marechal Castelo Branco.

Além disso, os dois ministros haviam iniciado uma fase de reformas importantes, como o redesenho do sistema financeiro. Haviam também criado o Banco Central (BC) e o Banco Nacional da Habitação (BNH) e implantado a correção monetária, instrumento poderoso para a expansão do crédito e, muito especialmente, do setor imobiliário.

A nova fase de expansão foi em parte sustentada, a partir do segundo governo militar, por um conjunto adicional de reformas. O novo ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto, mexeu no câmbio, encerrando uma longa fase de imobilidade, e criou incentivos à exportação.

Delfim Netto ao lado do então presidente Costa e Silva em reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Washington, nos EUA, em 26 de setembro de 1967 Foto: ARQUIVO

Com o câmbio mais flexível e uma nova concepção de comércio exterior, a indústria ganhou espaço nas vendas externas e novas condições de crescimento. O protecionismo ainda marcaria por décadas a atividade industrial brasileira e limitaria suas possibilidades de expansão e de integração global. Mas, naquele momento, o objetivo central do governo ainda era expandir, com instrumentos de política interna, as oportunidades de crescimento.

Delfim Netto nem sempre é lembrado como pioneiro na flexibilização do câmbio e como reformador do comércio externo. É mais citado como promotor do chamado milagre econômico, o intenso crescimento observado entre 1968 e 1973, e às vezes criticado pelo controle de preços e pela divulgação preferencial dos indicadores de inflação mais favoráveis. Mas seu legado é mais amplo do que indicam alguns admiradores e menos feio do que dizem os críticos.

Apesar dos tropeços na segunda metade dos anos 1970 e no começo do decênio seguinte, a abertura exportadora por ele iniciada produz efeitos até hoje. Parte muito importante dessa herança é a participação da indústria manufatureira nas vendas ao exterior. Além disso, o programa de substituição de importações, uma resposta à crise do petróleo iniciada em 1973, foi um importante estímulo à diversificação industrial, embora as mudanças tenham perdido impulso no final da década. Mas a semente sobreviveu e voltou a beneficiar a modernização econômica depois da crise na metade inicial dos anos 1980.

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O professor Sardinha também contribuiu para a transformação da agropecuária e para sua ascensão à liderança no mercado internacional. Mais visível e partir da segunda metade dos anos 1980, o fortalecimento do agronegócio resultou de políticas implantadas na década anterior. Também muito importantes para esse avanço foram as contribuições de Alyson Paolinelli, ministro da Agricultura entre 1974 e 1979, e João Paulo dos Reis Veloso, ministro do Planejamento entre 1969 e 1979.

Delfim Neto nunca renegou seu apoio ao regime millitar, nem sua participação na reunião ministerial onde se acertou a edição do Ato Institucional nº 5. Restaurada a ordem democrática, foi eleito deputado federal por cinco mandatos, participou da assembléia constituinte e manteve relações amigáveis e de colaboração com o deputado e depois presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Embaixador na França durante a presidência do general Ernesto Geisel, aproveitou a estada em Paris para frequentar cursos na Sorbonne. Quem o visitou na embaixada, nesse período, pode ter visto em sua mesa alguns dos livros lidos nesse período. Cheio de anotações a lápis, um desses livros era a Fundamentação da Crítica da Economia Política, de Marx.

Análise por Rolf Kuntz

Jornalista

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