Delfim Netto na ditadura: de ministro todo-poderoso do ‘milagre econômico’, a AI-5 e ao definhamento

Além de assinar o AI-5, Delfim comandou o Milagre Econômico (1967-1973), interrompido pelo primeiro choque de petróleo

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Foto do author Luis Eduardo Leal
Atualização:

Antônio Delfim Netto foi um dos mais emblemáticos exemplos da rara conjugação de rigor acadêmico com formulação de política econômica no Brasil. Ex-ministro, professor, economista, político, interlocutor e guru dos mais diversos governos, de Costa e Silva (1967-1969) a Lula (2003-2010), ele morreu na madrugada desta segunda-feira, 12, em São Paulo, aos 96 anos.

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Foram décadas de vida pública, iniciada ainda no fim dos anos 1950 em São Paulo, no governo Carvalho Pinto, e estendida, nos 1960, à administração Adhemar de Barros e ao primeiro governo de Laudo Natel - neste último como secretário estadual de Fazenda.

Mestre de uma geração de economistas, Delfim Netto foi também caso raro de tecnocrata com lugar no imaginário popular, especialmente a partir do fim dos anos 1970, na reabertura, quando a figura icônica, de óculos quadrados de armação tão escura quanto o cabelo, era inspiração para charges e esquetes humorísticos.

Maior obra do todo-poderoso ministro da Fazenda do governo Médici (1969-1974) - auge da ditadura, pós-AI-5, ato que Delfim também assinou -, o Milagre Econômico (1967-1973), interrompido pelo primeiro choque de petróleo, daria lugar a gradual definhamento ao longo do governo de Ernesto Geisel (1974-1979) - desafeto de Delfim que o enviou a premiado exílio em Paris como embaixador, entre 1975 e 1978.

Delfim Netto, Amaral Neto e Luiz Inacio Lula da Silva na Constituinte de 1988 Foto: Agência Senado

Inflação, estagnação e endividamento externo seriam “otimizados” pelo segundo choque do petróleo, em 1979, já no governo Figueiredo (1979-1985), quando Paul Volcker, à frente do BC dos Estados Unidos, recorreu a um choque de juros de proporções épicas, decisivo para a “década perdida” da América Latina, os anos 1980.

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“Se as condições fossem as mesmas e o futuro não fosse opaco, eu repetiria. Eu não só assinei o Ato 5 como assinei (também) a Constituição de 88, da qual aliás eu fui relator de (capítulo de) Princípios”, disse Delfim muitos anos depois de 1968 e também de 1988, em depoimento à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, no qual negou ter tido conhecimento de torturas ocorridas durante o regime militar e de ter pedido dinheiro a empresários para financiar ações repressivas. “Qualquer violência sobre alguém em poder do Estado é um crime”, afirmou em outra ocasião. “Não me arrependo, quando você decide algo, é com a informação e o conhecimento do momento.”

Poderoso durante o governo Médici a ponto de ter sido visado pela organização VAR-Palmares em plano para sequestrá-lo, Delfim também tinha adversários dentro do regime, em especial o ministro do Interior de Costa e Silva, general Albuquerque Lima, um linha-dura que segundo relato do então prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães, ao jornalista Elio Gaspari, reproduzido em “A Ditadura Envergonhada”, desejava ver o tzar da economia “enforcado, pendurado de cabeça para baixo, como ladrão”, assim como outro desafeto do militar - o coronel Mário Andreazza, ministro dos Transportes nos governos Costa e Silva e Médici, à frente de obras do “Brasil Grande” como a ponte Rio-Niterói e a Transamazônica.

Em janeiro de 1969, Albuquerque Lima demitiu-se por discordar da política econômica de Delfim (Fazenda) e Hélio Beltrão (Planejamento), que favoreceria “verdadeira escalada dos grupos econômicos poderosos” - o discurso de renúncia teve divulgação proibida à época, de acordo com acervo biográfico da Fundação Getulio Vargas (FGV).

“Naquela época do AI-5 havia muita tensão, mas no fundo era tudo teatro. Havia as passeatas, havia descontentamento militar, mas havia sobretudo teatro”, disse Delfim a Gaspari no mesmo livro, o primeiro dos cinco volumes do jornalista sobre “As Ilusões Armadas”. “O que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo era feito para levar àquilo”, acrescentou.

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Multifacetado, admirado pelos pares, mas também criticado, especialmente pela esquerda, por promover políticas para “fazer o bolo crescer antes de repartir”, Delfim Netto foi presença constante no debate público, em artigos e em entrevistas - um dos comentadores mais requisitados pela imprensa sobre a política econômica do dia, e que algumas vezes homenageou jornalistas em artigos, batizando “leis”, axiomas, com seus nomes.

Em Brasília, como deputado entre 1987 e 2007, era possível conversar com Delfim no salão verde ou nos corredores das comissões da Câmara sobre os mais diversos assuntos, refletindo sua ampla cultura e bom humor - da historieta do momento aos “founding fathers” da democracia americana, tudo parecia lhe interessar. “Wit”, palavra inglesa de difícil tradução, caía-lhe bem.

Delfim Netto quando era ministro do Planejamento do governo Figueiredo Foto: Arquivo/Estadão

Nem todos, contudo, admiravam o dom de Delfim para a palavra espirituosa. Entre os que trataram inicialmente o Plano Real (1994) como um “estelionato eleitoral” estava Delfim, o que não passou despercebido pelo então ministro da Fazenda, depois presidente da República por dois mandatos, Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

“O deputado Delfim Netto, sempre pronto a disparar uma frase de efeito para encobrir os malabarismos de seu raciocínio ou as inverdades que quer passar adiante como válidas”, escreveu FHC em “A Arte da Política”, no que se assemelha de forma menos polida a uma definição socrática do que seria um sofista, na escrita de Platão. O ex-presidente também não parece ter aprovado a economia de Delfim, “useiro e vezeiro em maxidesvalorizações e em promessas não cumpridas”.

Naquela época do AI-5 havia muita tensão, mas no fundo era tudo teatro. Havia as passeatas, havia descontentamento militar, mas havia sobretudo teatro

Antônio Delfim Netto

Entre o rigor conceitual da academia e a realidade pragmática da política, Delfim parecia admitir a inevitabilidade da ‘realpolitik’. Meio século após o golpe de 1964, contou que o regime militar buscava administrar preços por meio da dosagem da oferta de alimentos, especialmente os in natura - um meio, segundo ele, legítimo, mas que teria resultado em discrepância de estimativas sobre a inflação, em época na qual itens como tomate e chuchu costumavam aparecer como vilões dos preços.

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Da direita à esquerda, de Maluf a Lula, do regime militar à redemocratização coroada pela Constituição “cidadã”, o espectro de interlocução do ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura parece um negativo do período de polarização que predominou no País nesses últimos anos sob Bolsonaro, com política matizada por intolerância, religião e conservadorismo de costumes.

“Lula é um gênio, um diamante bruto, uma inteligência absolutamente privilegiada. Fez um bom governo e aproveitou oportunidade muito boa, que foi a expansão do mundo. Deu ênfase à inclusão social, ajudando a reduzir a pobreza e a preparar melhor as pessoas”, disse certa vez. “O aparelhamentro da Petrobras, a entrega da Petrobras para os políticos, foi uma tragédia. A responsabilidade do cidadão é imensa quando ele elege alguém”, acrescentou na mesma ocasião.

O Ministro da Marinha, Augusto Hamann Rademaker Grünewald (c), conversa com os ministros Delfim Netto (e), da Fazenda, Jarbas Passarinho (d), do Trabalho e Previdência Social, e Lyra Tavares (2º à esq.), do Exército, durante reunião no Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro Foto: Arquivo/Estadão

De Paulo Maluf, ex-prefeito de São Paulo que chegou a ser colocado em lista da Interpol e a ser preso por desvio de recursos públicos, conhecido também pela titularidade de uma das adegas mais valiosas do País, Delfim disse, com humor: “eu não; vou tomar um vinho com ele, é meu amigo”. A polêmica sobre a conduta também o alcançou nos anos 1970 quando, embaixador em Paris, foi acusado de receber dinheiro de cunhado do presidente Valéry Giscard D’Estaing, um alto executivo de banco francês que, na época, financiou a venda de equipamentos para a Hidrelétrica de Tucuruí.

O chamado “relatório Saraiva”, de 1976, elaborado por um adido militar que teria sido colocado em Paris por Geisel para monitorar Delfim, acabou sendo arquivado no SNI (Serviço Nacional de Informações), chefiado entre 1974 e 1978 por João Baptista Figueiredo, futuro presidente e amigo de Delfim, que o recolocaria no ministério em 1979, desta vez na Agricultura e, meses depois, no Planejamento, cargo em que permaneceria até a transição para o governo civil, Tancredo-Sarney, em 1985.

Preterido por Geisel em favor de Paulo Egydio Martins na escolha do candidato da Arena ao governo paulista em 1974, Delfim viveria novo momento de concentração de poder na gestão Figueiredo, reforçando parceria iniciada ainda na administração Natel, em que um chefiou a Fazenda e o outro a Força Pública de São Paulo.

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Com Figueiredo na presidência, Delfim e o ministro do Interior, Mario Andreazza, conhecido tocador de obras custosas, acabaram por se impor a Mario Henrique Simonsen (1935-1997), engenheiro e economista, expoente da FGV-RJ admirado pela racionalidade rigorosa, que em poucos meses deixaria o governo.

“Mario era um gênio. A prova disso é que a natureza não dá tudo para todo mundo. O Mario era um gênio, mas não conseguia dirigir automóvel”, disse Delfim em 2017, em entrevista à socióloga Elisa Klüger, para artigo no qual a autora compara as origens sociais e trajetórias profissionais dos dois economistas.

Combalido por problemas cardíacos e nas costas - dificuldade crônica que comparava a “dor de dente na bunda”, segundo Gaspari ­-, Figueiredo abriu espaço, com a saída de Simonsen do Planejamento, para a reedição do tzar Delfim, desta vez às voltas com dívida externa explosiva, inflação e estagnação econômica, distante da magia do Milagre. O desgaste colhido neste período de duradoura dificuldade acabaria sendo tão ou mais lembrado do que o sucesso inicial, de alguém que ascendeu no serviço público a princípio pelo mérito educacional.

Governo Costa e Silva: ministro da Aeronáutica Marcio Souza Mello, Delfim Netto e Almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald Foto: ESTADAO CONTEUDO / ESTADAO CONTEUDO

De origem humilde, neto de imigrantes italianos, filho de escriturário e costureira, do Cambuci, Delfim sonhava em ser engenheiro, mas a falta de condições materiais o conduziu à economia, onde a formação como contador facilitou o ingresso na nascente faculdade de Economia da USP. O Departamento de Estradas de Rodagem (DER) viria a ser o seu primeiro emprego público, concursado, após ter começado a trabalhar aos 14 anos como office-boy na Gessy. Em 1963, tornou-se o primeiro ex-aluno a ser professor catedrático da FEA-USP.

Após o início modesto, com habilidade pessoal e conhecimento técnico conseguiu participar do poder em boa parte do período militar (1964-1985) - à clara exceção de Geisel. Em retrospecto, Delfim atribuía a inimizade de Geisel a um episódio corriqueiro de quando era ministro de Médici e o general, presidente da Petrobras. Em encontro no exterior, com o mesmo Giscard D’Estaing, então ministro de Finanças no governo Pompidou, o colega francês teria alertado o brasileiro sobre a iminência do que viria a ser o choque de petróleo em 1973. Delfim transmitiu a informação a Geisel, que a teria descartado sumariamente por ter vindo de alguém que, nas palavras do então ministro, “não entende nada de petróleo”.

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“Uma vez tive uma pendência com Delfim”, relembrou Geisel em depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas, concedido entre 1993 e 1994, e publicado em 1997. Segundo Geisel, a pendência dizia respeito não a petróleo, mas a uma fábrica de borracha da Petroquisa. “Esta empresa, quando assumi a Petrobras, estava no vermelho. Eu procurava ver a causa do prejuízo e concluí que era devido ao preço da borracha, que o Delfim não deixava aumentar, para combater a inflação”, disse Geisel, acrescentando que o problema foi resolvido com um “recado” ao ministro.

“Delfim era muito centralizador dos assuntos relativos à economia. Tomava conta de tudo, conversava com o Médici, e este concordava com o que ele queria fazer”, observou seu sucessor na presidência da República que, no mesmo depoimento, também comentou o “relatório Saraiva”. “Sinceramente não sei o grau de sua veracidade”, afirmou.

Azeredo da Silveira, chanceler de Geisel que parecia compartilhar da falta de entusiasmo do chefe pelo embaixador em Paris, disse em longo depoimento ao mesmo CPDOC, da Fundação Getulio Vargas, entre 1979 e 1982, sobre a política externa da época em que esteve à frente do Itamaraty (1974-1979): “(Delfim) hoje não é mais o mago que foi no passado; é muito fácil ser mago de porrete na mão, mas é difícil ser mago na liberdade”.

As polêmicas acompanhariam o ex-ministro bem além do fim do regime militar e do desaparecimento de seus protagonistas. Em 2018, Delfim foi alvo de buscas da Lava Jato, em investigação sobre a usina de Belo Monte, na fase batizada como “Buona Fortuna” - o Ministério Público Federal apurava destinação, entre 2012 e 2015, de R$ 15 milhões ao ex-ministro, que teria ajudado a estruturar o consórcio vencedor, “harmonizando” as partes envolvidas. À época, o então juiz Sergio Moro determinou o bloqueio de R$ 4,4 milhões de Delfim, de um sobrinho e de empresas administradas por eles.

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