No meio da Floresta Amazônica, produtores de matérias-primas com forte demanda dentro e fora do Brasil enfrentam diariamente as limitações impostas pela própria localização geográfica. Com dificuldades para escalar a produção em áreas de acesso complicado e escoá-la por estradas esburacadas ou sem asfalto, o desafio de produtores e empreendedores da Amazônia é equacionar o ritmo acelerado de produção de empresas maiores com o ritmo próprio das comunidades tradicionais e até mesmo da natureza.
Ou seja, o que valoriza a produção local é também o que restringe a capacidade de oferta e a logística de transporte de mercadorias para fora da região. A extrativista Raimunda Nonata conhece de perto essa realidade: da isolada Reserva Extrativista do Iriri, no Pará, são 56 horas de estrada para vencer os 3.500 quilômetros até a cidade de São Paulo. A alternativa é encarar um dia inteiro viajando de carro até Altamira (PA), onde pega um voo de uma hora até Belém. De lá, são mais quatro horas de voo até a capital paulista. Isso se a viagem não tiver escalas.
Gerente da miniusina da Resex do Iriri, Raimunda enfrenta uma dura rotina para conseguir comercializar a castanha-do-pará e o babaçu produzidos pelas comunidades do Rio Iriri. Da mesma forma que Raimunda, muitos outros produtores lidam diariamente com as vantagens e desvantagens de empreender na região, o que acaba se refletindo no potencial inexplorado para negócios.
De acordo com estudo do Instituto Amazônia 2030, realizado em parceria com a Universidade de Nova York (NYU, na sigla em inglês), os 64 tipos de produtos amazônicos definidos como “compatíveis com a floresta”, exportados entre 2017 e 2019, representaram apenas 0,17% de um mercado global que movimentou US$ 176,6 bilhões por ano.
Coordenador do instituto, o engenheiro agrônomo Beto Veríssimo afirma que não existe solução única capaz de superar os desafios logísticos ligados à magnitude territorial da Amazônia. Em um cenário tão particular, diz o agrônomo, é fundamental compreender as vantagens comparativas da Amazônia em relação às demais regiões do País e direcionar esforços para explorá-las.
Sobra demanda, falta escala
Para quem trabalha com produtores da região, como a rede Origens Brasil, que promove negócios sustentáveis em áreas conservadas da Amazônia, o maior desafio é encontrar quem consiga atender o mercado. O número de empresas, de produtores e de membros da rede aumenta ano a ano, mas a escalabilidade da produção não alcança esse crescimento.
“Mapeamos comunidades que têm volumes menores e tentamos fazer o ‘Tinder da sociobio’ para casar o interesse entre quem tem uma oferta menor e uma empresa que tem uma demanda menor”, conta a engenheira florestal Patrícia Cota Gomes, que coordena a rede. Em alguns casos, como o da borracha e do cumaru, a demanda entre clientes do Origens é, pelo menos, duas vezes maior que a capacidade de oferta dos produtores da rede.
A solução encontrada pela Mercur, empresa gaúcha que produz desde luvas cirúrgicas até borrachas escolares, foi expandir o leque de fornecedores para adquirir sua matéria-prima. “Não queríamos forçar os seringueiros daquela região a coletar mais ou que ribeirinhos e povos indígenas se tornassem empregados da borracha de novo”, afirma o sócio Jorge Hoelzel Neto, que faz parte da terceira geração da família que fundou a Mercur, há quase um século. A empresa é parceira da rede Origens e compra borracha de reservas extrativistas do território do Xingu.
Tecnologia e sustentabilidade
Para Veríssimo, que coordena o Projeto Amazônia 2030, é importante que as soluções para escalar a produção não sigam modelos importados de centros urbanos. “Toda vez que a floresta importa esses modelos dá errado, porque eles não são adaptados à região”, diz. O que deve guiar as soluções, afirma, são as especificidades locais.
Idealizadores das biofábricas, os irmãos Carlos e Ismael Nobre querem solucionar um dos principais gargalos da bioeconomia na região: escalar a produção do que a floresta produz e suprir a demanda de consumidores nacionais e internacionais ao mesmo tempo em que fomentam a economia local. “O Brasil tem que fazer isso com protagonismo. Pode impactar até o PIB nacional na área de manufatura”, diz o co-fundador do Instituto Amazônia 4.0, Ismael Nobre, em entrevista ao Estadão.
Com um modelo de produção que alia tecnologia e sustentabilidade, transformando matérias-primas tradicionais em produtos de alto valor agregado, os dois cientistas pretendem romper com a lógica atual de extrativismo que não gera renda ou valor para os povos tradicionais da Amazônia. E querem provar que é possível fazer isso com a floresta em pé e respeitando as culturas regionais.
Ciclos de exploração exaurem recursos e pagam muito pouco. Para ter alguma renda, acaba sendo necessário extrair muito, o que tem pouco impacto econômico e muito impacto ambiental
Ismael Nobre, cofundador do Instituto Amazônia 4.0
Particularidades regionais
Para Raphael Mendes, que dirige o Centro de Empreendedorismo da Amazônia (CEA), o desafio é fazer a Amazônia passar da economia de uma árvore para a da maior diversidade do planeta. “Quando fizermos isso, vamos ter o mais longo, inclusivo, equitativo e sustentável ciclo econômico que o mundo já viu”, afirma.
Presente em mais de 70 cidades, o CEA atua como uma aceleradora de empresas nos nove Estados da Amazônia Legal. Dentre as particularidades da região, Mendes observa que a maior parte da Amazônia opera em condições de subsistência, com renda familiar limitada. Não há avalistas, agências bancárias, sequer emissão de nota fiscal em locais mais afastados. A predominância do mercado informal impossibilita o acesso ao crédito, sobretudo para novos empreendedores.
Nem mesmo pesquisas para desenvolvimento de produtos sustentáveis com matérias-primas da floresta estão disponíveis. “Como criar um produto novo na Amazônia se não há laboratórios ao redor para fazer testes? Ou estão trancados nas universidades, sem aplicação prática? Isso desanima”, lamenta Mendes.
Há nove anos, a empreendedora Joanna Martins, sócia da Manioca, tenta estabelecer parcerias com universidades da região para estudar possibilidades de industrializar alimentos largamente consumidos no Norte do Brasil de forma sustentável. Sem sucesso nesse esforço, Joanna investiu em tecnologia para estender o prazo de validade do tucupi, caldo extraído da mandioca brava, de 30 dias para 6 meses sem adicionar conservantes. (Reportagem de Adele Robichez, Katarina Moraes, Laura Abreu, Marco Dias, Róbson Martins e Tamara Nassif)
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