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Economista e advogada

Opinião | O ano do pensamento mórbido

Bolsonaro parece tirar prazer do aumento de mortes pela covid-19

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Por Elena Landau
Atualização:

Acabei de ler O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion. O livro é um diário dos meses que sucederam à morte de seu companheiro da vida toda, o também escritor John Dunne, e à doença grave de sua filha Quintana. Um relato de mais de 200 páginas sobre o luto.

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O marido sofreu um ataque cardíaco fulminante. “A vida muda em um instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia termina.” Ela se recusa a superar, não quer deixar ir. Se apega nas memórias, reconstrói momentos da vida a dois, se coloca no que chama de “buraco negro” na tentativa de parar o tempo nas lembranças de bons momentos.

Ler os obituários, mudar a conta conjunta, mexer na pilha de livros da mesinha de leitura, se desfazer das roupas penduradas no armário exigem atenção. Até que não pode adiar mais. “Até aquele momento, tinha me permitido apenas sofrer. O sofrimento é passivo. O sofrimento acontece. O luto, o ato de lidar com o sofrimento, exige atenção.”

Impossível não pensar nos familiares e amigos das centenas de milhares de mortos no Brasil. A eles só restou o sofrimento, o luto lhes foi roubado. Não houve despedidas, velórios e enterros. Num instante estavam juntos em casa, noutro isolados. E a vida como se conhece, termina. Sem despedidas. Só sofrimento.

Há uma diferença entre as duas situações: Joan se agarra a uma realidade que não existe, mas a despedida e o rito de passagem nunca lhe foram negados. Não é a nossa realidade da covid-19. Nem as casas funerárias dão conta de atender à demanda de tantas urnas e os corpos vão sendo empilhados, em ritual sinistro.

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Inação, psicopatia ou negacionismo são recorrentemente usados para descrever as atitudes de Bolsonaro e sua equipe. Mas esses termos só escusam um comportamento muito mais grave: o boicote intencional em cada ato e palavra.

Bolsonaro sabe que o STF nunca o impediu de atuar em conjunto com prefeitos e governadores. É apenas um jogo pessoal que custou milhares de vidas ao ter inviabilizado qualquer coordenação com secretários de Saúde. Na sua pantomima macabra, foi ao Supremo contra as medidas de restrição de atividades decretadas por governadores, sabendo que o pedido seria recusado sem nem sequer análise de mérito. “Todo mundo vai morrer um dia”, é o que ele diz.

A campanha contra o simples uso de máscaras revela sua desumanidade. Parece tirar prazer do aumento do número de mortes. Há uma clara intenção de boicotar toda e qualquer iniciativa de reduzir os efeitos da pandemia nos brasileiros, sejam impactos sanitários, sejam econômicos. Ele quer atrapalhar, sempre.

Campanha do presidente contra o simples uso de máscaras revela sua desumanidade Foto: Dida Sampaio/Estadão

Há pouco mais de um ano, tivemos a primeira vítima de covid-19. Mas foi só há apenas dez dias que o presidente, pressionado por Congresso e STF, que por sua vez foram pressionados pela sociedade, admitiu a gravidade da crise. Ao mesmo tempo, cinicamente, permite que os apoiadores fanáticos estimulem a desobediência a decretos ou mesmo incentivem motins policiais contra medidas de lockdown.

Ele e os ministros da ala ideológica, se é que existe alguém neste governo que não esteja por ideologia, não são ignorantes, são cruéis. Muitos devem ser responsabilizados. Pazuello não agiu sozinho. Nem Ernesto, nem Guedes. São todos parte do mesmo sistema. São todos movidos por pensamentos mórbidos.

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A queda de popularidade nas pesquisas o assusta mais que as mortes por sufocamento nas filas de espera da UTI. Com perversidade, imitou a sensação de asfixia em uma de suas lives. Bolsonaro está perdendo apoio e o sistema de saúde colapsou. A crise institucional que provocou esta semana mostra o tamanho de seu desespero.

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Uma CPI da Pandemia é urgente. Que seja o primeiro passo para responsabilização de seu governo. Bolsonaro comete crimes de responsabilidade cotidianamente. Mas pedidos para seu afastamento permanecem na gaveta. As alegações variavam de “só vai piorar a crise” a “não tem apoio político”. Essas objeções não fazem mais sentido. Não faltam evidências de crime de responsabilidade contra a saúde pública.

Tenho esperanças, mas não tenho muitas ilusões. O mesmo Congresso que ameaça o presidente com remédios amargos, não viu urgência para liberar auxílio emergencial. É o mesmo Congresso que usa a contabilidade criativa para financiar obras paroquiais. Se a ala ideológica do ministério for, de fato, substituída pela ala da Centrão, o sinal amarelo vira verde rapidamente.

Talvez seja esperar demais que o Congresso saia das ameaças para a ação. Ou que os responsáveis por essa tragédia respondam por seus atos. Ou que um presidente desprovido de sentimentos demonstre solidariedade com os que se foram e os que ficaram sozinhos com seu sofrimento.

Não podemos reverter o tempo. Mas podemos ajudar a muitos brasileiros viverem seu luto. Vidas que se foram, não retornam. Não há buraco negro onde se abrigar da dor. O luto exige atenção. 

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