BRASÍLIA – Henrique Meirelles conta que aprendeu a manter a calma sob a mira de um revólver. Ainda no movimento estudantil, em 1963, em Goiânia, foi eleito para a presidência da União Goiana dos Estudantes Secundaristas (UGES), mas a chapa perdedora não aceitou a derrota e se entrincheirou na sede da entidade.
Armado, um deles apontou para Meirelles e avisou que ia atirar. “Mantive a calma e apostei que ele não ia acertar, porque estava com a mão tremendo. De fato, ele errou os seis tiros”, conta Meirelles, sob risos, em entrevista ao Estadão. A experiência marcou sua vida e o ajudou depois a lidar com momentos de pressão, seja como executivo global do Banco de Boston ou na chefia de cargos-chave do governo brasileiro, como no Banco Central e o Ministério da Fazenda.
Meirelles, que é colunista do Estadão, também diz que aprendeu a manter a calma pela convivência com “Zé Lourenço”, um motorista da família que havia cumprido pena pelo assassinato de 21 pessoas, um verdadeiro “serial killer”.
“Meu pai foi diretor da penitenciária e acreditava na regeneração das pessoas. Teve em Zé Lourenço um caso de sucesso. Um dia perguntei ao Zé por que isso acontecia. Ele respondeu que ‘dava um branco’ quando provocado, e depois aparecia um corpo na sua frente. Felizmente, nunca o vi nervoso”, diz.
Meirelles revela outros fatos curiosos. Quando era presidente global do Banco de Boston – ele foi o primeiro não americano a assumir o banco – levou um tapa nas costas como forma de cumprimento de Donald Trump, durante um evento em Nova York. Na época, Trump era empresário do ramo imobiliário, vivia de altos e baixos e tinha relações com o banco.
“Recebi um tapa nas costas, daqueles que só recebia de amigos, quando era adolescente em Goiânia. Quando me virei, era Trump, sorrindo. Ele contou que havia acabado de negar uma esmola a um mendigo, porque disse que ele era mais rico que ele, já que não não tinha uma dívida de US$ 2 bilhões”, conta.
Meirelles relembra o único momento em que Lula tentou interferir diretamente sob a sua condução à frente do Banco Central: “Foi em 2007: ele me ligou, antes de uma reunião do Copom, e disse que nunca tinha me pedido nada, mas que ia me pedir para reduzir os juros”, conta. “Falei que seria um erro e não baixei os juros. Foi a única vez que isso aconteceu”, revela.
Sobre a indicação do economista Gabriel Galípolo para a presidência do BC, ele entende que isso “termina a briga” entre Lula e a autoridade monetária. “Quando Galípolo assumir, não é que Lula vai gostar (da alta dos juros) e aprovar. Mas, na minha opinião, termina a briga”.
“Calma sob Pressão”, da Editora Planeta, vai ser lançado nesta terça-feira, 24, na Livraria Travessa do Shopping Iguatemi, em São Paulo, a partir das 19h. A seguir, os principais trechos da entrevista:
O título do seu livro de memórias é ‘Calma sob Pressão’. E o sr. conta que teve um episódio em que manteve a calma mesmo levando tiros. Como foi isso?
Eu tinha ganhado a chapa do grêmio estudantil, em 1963, em Goiânia, mas os perdedores não aceitaram a derrota e se entrincheiraram na sede da entidade. Fomos para lá e um estudante apontou a arma pra mim e gritou: “Volta, Henrique, senão vou te matar”. Ele estava com a mão tremendo e apostei que fosse errar. De fato, ele deu seis tiros, mas não acertou mesmo. Funcionou (risos).
O sr. também conta também que teve um motorista serial killer. O seu pai era diretor de uma penitenciária e deu uma chance para ele?
Ele tinha esse direito (de sair, sob tutela de uma autoridade), e aí virou nosso motorista. Um dia perguntei para ele se era verdade. Ele falou que sim. Perguntei quantas pessoas ele tinha matado. Ele disse: 21. Perguntei por quê. Ele disse que, às vezes, uma pessoa o provocava e depois ficava tudo branco, não via mais nada. “Quando acordava, tinha um morto no meu pé.”
Existe um episódio em que o sr. levou um tapa nas costas de Trump e lembrou da sua juventude. Por quê?
Eu era presidente do Bank of Boston e tínhamos patrocinado um concerto com os Três Tenores em Nova York. Depois do evento, estávamos cumprimentando os convidados, quando recebi um tapa nas costas, no estilo da minha adolescência em Goiás. Os homens não se abraçavam, demonstravam afeto dessa forma. Aí, quando olhei, ele falou: Welcome to New York, Henrique (bem vindo à Nova York, Henrique).
E depois?
Ele disse que estava andando próximo ao Midtown (região de Nova York) e um mendigo o pediu dinheiro. Ele negou e disse que tinha US$ 2 bilhões em dívidas e, por isso, o mendigo estava melhor do que ele. Trump sempre jogou muito agressivamente no mercado e nas empresas. O negócio dele era construção, apostava muito no mercado.
E como foi o momento em que a Kathleen Kennedy, sobrinha de JFK, afirmou que o sr. não podia ser brasileiro?
Eu tinha dado uma palestra em um evento sobre mulheres empreendedoras. No final, ela entrou na sala, virou para mim e disse: “O senhor é presidente do Bank of Boston? Certamente tem algo errado, porque um brasileiro jamais poderia presidir essa banco, ele é bastião da tradição. Inclusive o meu avô (Joseph P. Kennedy, ex-embaixador dos EUA no Reino Unido) era o maior cliente do Bank of Boston, mas nunca foi recebido pela diretoria porque era descendente de irlandês”, contou ela. Respondi que as coisas estavam mudando.
O sr. consegue um feito no livro que é ter prefácios tanto do atual presidente Lula quanto do ex-presidente Michel Temer. A que o sr. atribui essa capacidade de diálogo?
Acho que porque não sou político de carreira. Eu fui convidado pelo Lula porque não era político. Trabalhamos bem e fiz o possível dentro da minha área. Sempre com excelente relação. Posteriormente, quando o presidente Michel Temer estava pronto para assumir, ele conversou com várias pessoas, que indicaram meu nome, também dentro dessa abordagem profissional e técnica. Eram dois momentos de crises, quando me convidaram.
Em 2002, antes das eleições, o sr. chegou a ser sondado por Aloizio Mercadante...
Sim, mas eu disse que não tomava decisão por hipótese. Afirmou que, se o Lula ganhasse, poderíamos conversar. Depois da eleição, Lula e eu nos encontramos em Washington, eu estava encerrando minha passagem pelo Bank of Boston.
E nessa conversa, vocês definiram a independência na prática do Banco Central.
Isso. O Brasil vivia uma crise cambial brutal. Ele me perguntou se tinha jeito de resolver. Respondi que sim e apontei alguns caminhos. Ele, aí, me perguntou se eu aceitaria ser presidente do Banco Central. Disse que dependia da independência.
E qual foi a resposta?
Ele questionou: “Eu te nomeio e você fica independente?” Eu disse que era igual com ministros do Supremo Tribunal Federal e ministros também do Tribunal de Contas da União. Ele entendeu e tocamos nesta linha.
Mas a lei de fato não foi aprovada...
Ele me disse depois que não tinha condições de ser aprovada. Eu falei: “Vamos fazer o seguinte: eu faço o meu trabalho e o senhor tem a prerrogativa de me exonerar. Então, isso vai ser problema seu. Vamos em frente”.
Mas o sr. conta que chegou a pedir demissão. Ele aceitou e depois voltou atrás?
Foi em abril de 2008, não tinha nem sinal da crise financeira que aconteceria em setembro. Tudo ia bem. Mas eu achava que era momento de voltar a subir juros, para evitar um superaquecimento da economia. Só que, em 2007, a gente tinha tido um episódio de atrito, quando ele queria reduzir os juros. Eu não queria passar por aquilo de novo.
E aí ele pediu para jantar na sua casa?
Sim. Ficou tudo marcado, preparamos o jantar, a segurança do presidente veio, ficou posicionada. Mas o tempo foi passando e Lula não chegava. Estava no Alvorada e não atendia telefone. Então, pedi para a segurança ir embora e compreendi que isso significava que ele tinha mudado de ideia.
O bolo era um sinal de que tinha desistido de te demitir?
Isso. E depois de uma semana eu o procurei, toquei no assunto e ele respondeu: “Nunca mais fale nisso” (sobre a demissão). Acho que ele avaliou as consequências sobre a saída, com mudança de linha de atuação. Seria arriscado.
Mas como foi esse pedido para reduzir a Selic?
Em 2007, antes da reunião do Copom (Comitê de Política Monetária), ele me ligou – o que era inusitado. Ele me disse que nunca tinha me pedido nada, mas que agora me pedia para reduzir a Selic. Repetiu os argumentos que estavam falando para ele. Eu respondi que seria um erro, que tomaríamos a decisão acertada e que o Brasil cresceria os 5% que era a meta do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). No final, eu falei que íamos combinar o seguinte: eu ia fazer o melhor para o Brasil e, em consequência, para o governo.
Foi uma interferência direta. Foi a única?
Sim, foi a única vez. E a Selic foi mantida, não houve o corte.
Que recomendação o sr. daria para Gabriel Galípolo?
Ele terá as informações necessárias para uma decisão técnica. No momento em que ele tomar essa decisão (de subir juros), a inflação cair e o País crescer, todos vão aplaudir – inclusive o presidente da República.
Que balanço o sr. faz da política econômica do governo Lula?
O que foi pregado na campanha, de gastos sem limite, acho que isso foi controlado com contribuição importante do ministro (da Fazenda) Fernando Haddad. Houve uma moderação nessa questão fiscal. Sobre o Banco Central, acho que, evidentemente, o Lula não gosta que se suba os juros. Quando o Galípolo assumir, ele (Lula) vai aprovar. Mas, na minha opinião, termina a briga.
Por quê?
Porque uma das coisas que me ajudaram muito foi que ele me convidou e me nomeou. Acho que a mesma coisa pode acontecer com o Galípolo. No caso do Roberto Campos Neto, o Lula fica precavido, porque ele foi nomeado pelo Bolsonaro. Então, acha que tem postura que pode ter decisão política. Então, (a tensão) tende a arrefecer um pouco.
Interlocutores já contaram que Lula gosta que a equipe econômica explique os detalhes a ele. Isso procede?
Procede. Primeiro, ele tem de confiar na pessoa. Ele precisa confiar que a pessoa está fazendo algo que seja o melhor para ele, independentemente de ele concordar ou não. Segundo, essa disponibilidade de ir lá conversar com ele. Acho que isso é importante e faz diferença.
O sr. diz no livro que a disputa para a presidência em 2018 se baseou em um erro de avaliação. Mas o sr. só se deu conta disso depois de conversar com Steve Bannon, que ajudou Bolsonaro.
Minha campanha foi baseada na racionalidade, e a eleição foi emocional, principalmente depois da facada. Em um evento nos EUA, Bannon (ex-assessor de Trump) me viu e me convidou para jantar. Ele afirmou que levou à equipe do Bolsonaro a ideia do uso do marketing e da mídia social, criando um universo paralelo que começou a se desenvolver nessa época. Era algo que ninguém previa.
Depois de seis anos, tivemos agora a cadeirada na campanha em São Paulo. A polarização continua igual?
Acho que evoluiu: o Lula apresenta dados, propostas, o Bolsa Família. É uma realidade concreta. Do outro lado, os oposicionistas criticam. Então, de certa forma, não é uma realidade paralela.
Mas, em São Paulo, tivemos essa cadeirada na corrida para a prefeitura. Pablo Marçal não segue exatamente o que o Bannon falou?
Ah, sim. Mas acho que o mundo achou uma certa vacina. Ele não está liderando (a campanha), por exemplo.
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